domingo, 28 de junho de 2009

e de repente... a memoria

tudo me desabou
sou um estranho nos lugares que fiz meus
perdi as cartas de marear
desse oceano que em mim se achou
derrubei-me do pedestal onde brinquei de ser deus

a memória
acorda-me assim
do estremunho em que me iludi adormecer
trazendo de volta a mesma velha história
que julgava ter feito desaparecer

mas os gestos que em mim se reavivam
de novo se fartam
nos naufrágios de um eterno adiar
amputados ao corpo do qual se apartam
ficam sem foz onde irem desaguar

esconsa e improvável dança
que coreografo numa indiferença fingida
corpo órfão que ao ritmo da ausência balança
embalado por musica que para o tempo vai sendo perdida

porque depois da pureza inicial
já nada subsiste
contaminou-se o sonho com o olhar depois do olhar
alguém me grita num murmúrio – desiste!
e eu deixo-me então aqui ficar

de nada me adianta
dar um só passo em frente
o precipício há muito que deixou de me ser razão
e o desejo premente
amordaça-se-me na mão

vou então
para o meio dessas ruas pejadas de gente
e aos lábios
os farei desenhar um sorriso de circunstância
porque a intensidade do que em meu peito se sente
põe-me a descoberto uma alma em permanente transumância

boas!
Vou deixar-me estar aqui no meio de vós…
mas por favor, não me desateis nenhum dos nós!
preciso do intrínseco emaranhado deles todos!



Leal maria

naquela ausência de ternura...

aquela ternura que no olhar trazia,
a possibilidade de toda a poesia.

onde está isso agora?
a vida empenhada num jogo de azar e sorte.
memória de uma feliz hora
secreta alquimia de quem  fraco se fez forte

onde está que não vejo,
a fúria do desejo,
a luta pela vitória final
o bem em simbiose com o mal?

não sei!
de ambos desconheço o paradeiro.
perde-se a eficácia das qualidades que lhes atribuem…
já não os tenho por algo verdadeiro.
a parte maior já não se faz daquilo com que contribuem.

tudo se torna inócuo perante a lassidão,
que é suavidade de um braço que abdicou da violência!
infértil a mão
toma conta de nós a impaciência.

mas hoje trinquei o teu corpo com frenesim.
e assim, por mim degustada, gemias de prazer.
"não" "sim"
sentia-te desfalecer…

de quantos mais gemidos precisas,
para que te digas senhora do universo?
não sabes quais são as necessárias premissas
para se fazer uma ilusão de amor e um verso?

mas não é para isso que aqui estou!
aliás… muito de mim foi ali e não voltou…
deixou-se ficar noutro qualquer corpo que encontrou por acaso.
sei-o, porque sinto-me também naquele lugar quando por lá passo…

a outra parte julga-la contigo.
mas eu sei que ficou à beira de um rio,
cantando uma canção de amigo,
enquanto te espera nesta tarde de estio.

o melhor de ti não o dás facilmente...
chamam-te e fazes-te distraída
 meu querer não é assim tão premente
por aqui fico com a vontade retraída.

esse que aí está não sou eu.
mas sim aquele que um outro eu te prometeu.
nem sei quem sou ou sequer quem fui.
chamar-me-ei Manuel; João ou Rui…

há até quem se diga leal maria.
nomes... apenas uma vestimenta gráfica.
pretensões esotéricas e de poesia,
a tentar encobrir a forma crua e pornográfica!

dar forma ao que sou?
a incoerência da alma como paradigma de estetas?
porque então tanto se usou.
flamejantes palavras retiradas a ferros d´outras almas circunspectas?

nada disso importa!
tudo é efémero e passará.
quando transpor a derradeira porta,
nenhuma parte dos que me fazem regressará.

entretanto, deixo-me por aqui ficar,
nesta minha ubiquidade.
revezando-me nos que te continuarão a amar,
povoando sempre uma e outra cidade…



leal maria

domingo, 21 de junho de 2009

esquece por momentos a linha do horizonte

esquece por momentos a linha do horizonte
também as superfície das águas
profundidades onde muito há para que agora te o conte
podíamos acordar os que lá estão com suas mágoas

olha o ponto infinito 

onde está a essência de todo o sonho
deixa atrair-te para o seu abismo
flutua por cima de tudo aquilo que em ti é um sentir medonho
não te seja a alma assolada por nenhum cismo

por breves momentos, quero que sejas só tu
despida de toda essas inquietações que te afligem
a alma quieta e o corpo puro e nu
oferecido às musas da poesia e às loucuras da vertigem

e assim, de tudo despojada e frágil
os demónios darão largas à sua luxúria em orgíaco festim
deixemo-los abraçarem-te com o seu abraço ágil
para que  possas ser resgatada por mim

estender-me-ás então a mão
convidando-me a que te a segure entre as minhas
e levar-me-ás contigo
para que também eu sonhe os sonhos que de novo sonharás
então ser-me-ão endireitadas todas as linhas
e serei a folha em branco onde novas histórias escreverás

o vento virá e dará nosso testemunho em verdade
acariciar-te-á os cabelos
desenhando neles um esboço do impossível futuro
antes da tua partida eras já  em mim saudade
couraçado com os teus sonhos derrubarei todo o inexpugnável muro

ouvir-te-ei então cantar a derradeira canção de amor
onde te ancorarás em natural matrimónio ao mar
o mundo travestir-se-á com a sua original cor
e em todas as ondas se fará ouvir o novo nome com que te irão baptizar

chamar-te-ás Nada porque és tudo o que de belo existe
e só o vazio pode albergar o tanto que em ti é tanto
todo o sentir que farás germinar estará para lá do alegre ou triste
nele reconhecer-te-emos por ser-nos maior o espanto

esse será o tempo em que de ti me apartarei
porque já não fará sentido habitar os teus mundos
de novo ao meus originais trilhos regressarei
onde são ínfimos, infinitos e paradoxais os seus segundos

nas noites subsequentes a esse instante
olharei estrelas para nelas reconhecer o teu delicado traço
ali ficarei sem dar um só passo adiante
aconchegado que estarei a sonhar o mesmo sonho onde agora te abraço


leal maria

domingo, 14 de junho de 2009

desenha-se o sonho a giz

os desafios que lançamos …
os amores que não escolhemos…
os sonhos que alcançamos…
os corpos que não temos….

que é tudo isso para que em nós seja tanto?
interligações que o tempo e o espaço irá quebrar…
e ali ficaremos naquele maior espanto,
que é ver surgir e morrer do nada um muito amar!

nada nos diz que amanhã ainda seremos nós!
mesmo quando só deixamos desaguar –nos o que perdura…
fatalmente
desaprenderemos os segredos com que atamos todos os nós;
e para nos atormentar,
ficar-nos-á somente a memória da ternura.

aí, o que faremos com o que nos ficar nas mãos?
olharemos para o lado e renegaremos aqueles que já fomos?
mas as marcas dos nossos passos ficam impressas em tantos chãos…
constantemente lembrando-nos o passado,
para que não nos percamos naquilo que somos.

vamos deixar-nos então, naufragar na sensibilidade!
as pétalas, flutuando nas águas, agitam-se no ventre da delicadeza…
ver-nos-emos sempre arredados da maior idade,
e o sonho acabado ser-nos-á sempre a maior certeza.

tão breve é o poema… mais breve é a juventude!
depois de na vida passar-mos à outra metade,
pela frente só somos senhores de um terço da maior virtude.

que a outra parte se fica no delicado traço
com que se desenham os sonhos de um tempo sem idade
e se faz mais intenso o abraço
por sentirmos a ausência roubar-nos toda a possibilidade

tudo se resume à magia da palavra e à confusão da forma do verso
e aqui estou eu a falar contigo e parece que é comigo que converso

mas o tempo não está para carpir mágoas,
porque há muito que a tempestade assola o meu “país”!
ainda antes de a flor cair às águas
etéreos traços de um lápis me desenhara o sentido a giz .

é a giz que se desenha o sonho,
porque tem como destino o desvanecer-se.
nele reside toda a vã esperança que na vida ponho,
pois sou um homem que ainda tem de conhecer-se …



leal maria

sábado, 13 de junho de 2009

o pó que levanto nos caminhos

porque anuncias ao que vieste?
não sabes por acaso guardar um segredo?
olha e vê o que fizeste:
despertaste a solidão com tudo o que ela traz de medo!

porque ficas aí nessa amorfa placidez?
olhas, por ventura, algo no nada que te anuncie o fim do muro?
guarda-te dessa desilusão, pois contém tanta acidez;
e são tantos os muros que é por isso que tudo está escuro!

vem! aconchega-te a este recanto onde eu já estou!
foge dessa violência que agora se solta…
tudo vai piorar quando chegar o que ainda não chegou…
e eu e tu, então, anunciaremos que estamos de volta!

agora temos é que ter paciência absoluta…
tudo se fez para que nos preparasse-mos!
o que me é alma está resoluta;
e só a carne em nós jogou para que nos apartasse-mos.

mas conquanto estejas aí e eu o saiba,
nada me fará soçobrar ou mesmo perecer!
porque não há sonho que em mim não caiba,
se assim for a urgência do meu querer…

que soltem os ventos e todas as fúrias das marés…
contra mim nada podem, porque eu personifico a contradição!
abraça-te a mim com toda a essência daquilo que és…
será teu abrigo o meu corpo e a fronteira de tudo a minha mão!

afinal, tudo é uma luta onde se digladiam a capacidade e a sorte;
e a circunstâncias mais não fazem de que nos afiar os punhais!
há muito sei ser filho de uma vida que se gerou da morte!
há muito sei que para onde eu for é esse o lugar para onde vais!

vê que nada te apresento como tua escolha!
nada tens que decidir sobre o que te espera ou que o futuro te destina!
a linha do horizonte tudo esconde quando se a olha…
mas é o que nela não vejo que tudo me ensina!

as velhas da minha maior ancestralidade,
vêm-me a meio das noites mais solitárias aconchegar…
trazem de novo as suas histórias em que a ilusão era a verdade
e cheiram ao intenso bafio da saudade;
mas as curvas das suas costas nem a morte as conseguiu endireitar!


porque são as coisas assim no universo!
tudo é enviesado; tudo é torto!
somente a perpendicularidade da rima de um verso,
o impede de ser dado como morto!

atrás de mim vejo uma criança sentada num banco de carpinteiro;
e o velho ao seu lado oferece-lhe um cigarro que fumará com prazer.
também lá estas tu com aquele em que fui primeiro;
e aí… somente aí; tu e eu continuaremos a eterna vida de onde se ausentará todo o morrer…

entretanto; faz silêncio para que os silêncios ocultos não despertem…
as palavras que calam encerram o terrífico pormenor!
se acordam corremos os risco que desertem...
e isso seria matar a possibilidade da continuidade do amor!

se assim acontecesse,
onde iríamos buscar a justificação para tudo o que já se passou?
valia mais que antes de se nascer se morresse
e não ter levantado o pó dos caminhos por onde se andou!

mas isto são palavras minhas
arrancadas à força à mais profunda solidão!
sem ajuda de ninguém as fiz emergir sozinhas
e sozinhas se criaram órfãs da minha mão!

a esquerda!
que a direita entreteve-se a acariciar um demónio porque um deus a rejeitou!
não deve ter-me reconhecido! ou então esqueceu quem eu sou…



leal maria

a flor caiu às águas e levantou tempestades

nas palavras que dizias escondias o que te ia na alma
mas o que querias dizer ouvia-o eu perfeitamente
que nessas tardes ainda que reinasse uma enganadora calma
sentia o meu e o teu tempo numa promiscuidade intermitente

nunca nenhum alarido fizeste
ainda que te embargasse a voz tudo aquilo que não disseste
olhavas-me como se não houvera passado
e só existiriam amanhãs
mais do que corpos que se amam sem nunca se haverem amado
havia em nós a inconsciência de serem as esperanças tão vãs

era quando em ânsias corrias estrada acima
e num desespero mal contido
a ilusão tomava conta de todos os teus pensamentos
ao ver-te assim ficava eu tão comovido
porque em nós eram outros os dialectos dos sentimentos

recordo o descompasso do bater do meu coração
e queria tanto que essas horas fossem eternas
ainda que doesse aquele amputar dos gestos que me nasciam na mão
havia-te no olhar as carícias mais ternas

agora tudo passou e em ti nada sei do que resta de mim
poder-te-ia até dizer que não penso muito nisso
mas não é verdade porque as coisas são mesmo assim
e são tantas as perguntas que de respostas me mantêm omisso

mas já não quero saber dos amores que amaste ou que amas
é-me indiferente o caminho que agora segues
se não é por mim que nas profundezas dos teus sonhos chamas
pouco me importa quais os sonhos que persegues

porque o meu amor tem como segundo nome o egoísmo
e é ao corpo e à alma que exijo o meu tributo
meu reino não é deste mundo mas daquele com que sempre cismo
e nele é o mais absoluto de mim que permuto

mas vai à tua vida e sê feliz conforme te aprouver
que eu por aqui fico a dar definitiva morte a este meu querer

porque agora que te foste embora
os lugares de sempre já não são os mesmos de antes
já nada de ti em mim se demora
e servo me fiz dos imediatos instantes

e o tempo
esse
continua o que sempre foi e o que sempre irá ser
uma fronteira entre o querer e o poder

maldito
não lhe bastando matar-me o sonho traz-me também a dor
e levanta as tempestades ao deixar cair na água a flor






leal maria

quinta-feira, 11 de junho de 2009

vazio

que nada é este que agora me faz tão vazio?
em vão tento arrancar um suspiro; uma tristeza;… e nada!
corre dentro de mim a placidez calma de um pequeno rio…
navega minha alma no fluido caminhar d´aguas de uma jangada.

que é feito daqueles dias em que tudo era-me tormenta?
para onde se ausentou a ausência que em mim morava?
nada sou se apenas me habita esta dolência que tanto me tenta!
só me reconheço naquele que de mim ansiava o que não chegava!

não sou eu este que aqui no meu corpo vai impassível!
não poderia nunca estar feliz só porque o sol brilha!
que o que de mim conheço almeja o impossível
e não se satisfaz nos caminhos que um outro passo já trilha.

eu quero a frase que cria o medo!
eu quero o verbo que confessa a inconveniência!
eu quero ser o invólucro do inviolável segredo!
eu quero a alma e o corpo ígneos de impaciência!

que brotem lágrimas onde não as tenho
e os sentidos me refulgem de rubro sentimento!
a escuridão reine nos lugares de onde eu venho,
para que veja em almejada luz o fim de um tormento!

assim não sei quem sou; quem fui; ou quem serei!
nada me apoquenta, nada me traz em cuidados…
não sou senhor nem tento a megalomania de ser de tudo rei;
e quase perdoo os corpos que por mim não foram fornicados.

porque me consola esta fraca vontade
de apenas ter um corpo onde aliviar o tesão?
não se guerreiam em mim a mentira e a verdade
e trago de suaves carícias, grávida a minha mão.

quero de volta minha alma insubmissa
e a voz embargando-se-me pela falta que alguém me faz!
ir ao jogo sem qualquer tipo de premissa
e a inquietação que a antecipação já não me traz!

não quero mais esta mórbida monotonia
que é um bárbaro sentido que se vai desvanecendo!
definha tudo o que em mim é poesia;
anunciando que a resignação vai-me vencendo…



leal maria

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Portugal fintando o mar

ainda hoje espero ansioso os dias
porque é muito
o que continuo a desejar nas suas manhãs
mas olho a ténue neblina tecida nas maresias
e sinto-a triste mortalha
das velhas quimeras que a memória me traz

o vento passa
e são árvores que continua a acariciar
iguais a tantas outras que tombaram
para dar firmeza ao meu caminho de mar
maternal ventre dos cadáveres que nele se sepultaram

o braço afrouxou-se-me no passar do tempo
os séculos tentam devorar o que resta de mim
e da pretérita fúria
em promiscuidade com o mais puro sentimento
há muito lhe sobreveio o fim

sei que nada de divino houve no que fiz
nenhum deus me ungiu para que o servisse na fé
o sonho existiu porque minha vontade assim o quis
somente tentei
contra a malsã fortuna e as más marés manter-me de pé

algumas vezes soçobrei
pois soçobrei
assim o determinou as circunstâncias a que chamam destino
que do mundo querer ser rei
não foi feito para alguém tão pequenino

mas que me adiantaria tanto horizonte
se temesse as tormentas que germinavam nas águas
desejei e fui o primeiro pilar da universal ponte
ainda que ao sal do mar
se acrescentasse o sal das minhas mágoas

o sonho não me nasceu de parto fácil
muitos foram os corpos que tiveram de cair para lhe dar consistência
e ainda que o mundo tenha a sua memória tão volátil
navega agora na minha ritmada cadência

porque quis e fui senhor
e senhor me mantenho neste corpo envelhecido
por ganância ou amor
soube dar ao mundo a parte amputada que ele havia esquecido

ao oceano é com renovado olhar que agora o olho
e lhe pus o nome de saudade e memória
se por mim cresceu
o seu destino já não sou eu que o escolho
mas fui uma das partes maiores da sua história

tenho atrás de mim outro mais velho do que eu
estende a mão chamando-me a sentar-me consigo
aceito-o
porque se o sonho no oceano me nasceu
definida a sua forma
ficou indefinido o destino que persigo

sou eu
neste rectangular corpo que aqui vês
fitando nostálgico o atlântico
sou Portugal e quem me chama diz-me português
e na minha língua se canta a primeira estrofe do universal cântico



leal maria

domingo, 7 de junho de 2009

aquela noite

foi aquela a noite
a mãe de todos os desejos
as emoções entoadas como solfejos
ó meu amor
que nunca estás onde a saudade ficou

em vão tentei arrancar-te do lábio
o inconfessável murmúrio
que subtraísse à esperança o verbo espúrio
porque o poema se fez
da palavra que em ti germinou

mas foste alma que se deu
com o corpo ausente
e assim tão de repente
do teu ventre julguei germinarem universos

por ti busquei o sonho
e ousei-o sonhar
tudo era um imenso desaguar
de silêncios e subtilezas
nos gestos nos olhares e nos versos

de tudo isso apenas me ficou
o corpo insaciado e traído
um sentir pelo qual nenhum de nós zelou
e jaz agora na vala comum de um sonho perdido

é na palavra que ficou por dizer
que se encerra o segredo maior
de todas as razões subjugadas a um querer
mas isso é apenas um pormenor

que a noite continua imensa
perdura ainda a ilusão do que de ti em mim se procurou
conquanto minha alma te pertença
a quimera só me subsiste no que nunca se encontrou


leal maria

quinta-feira, 4 de junho de 2009

perdi as horas e não me importo

perdi as horas e não me importo
há muito perdi a maior substância do tempo
e já nem a tento agarrar
sou um navio
encalhado no cais de um qualquer porto
oscilando
na vã pretensão entre o partir e o chegar

se havia desejo naquele corpo
eu não o possuí
no lábio
o beijo que lá morava
não era para mim guardado
que cada um se bastou a si
e sou agora a parte menor do que me foi amputado

nas mãos pendem-me punhais
no antebraço
tenho tatuada a ausência e a saudade
meus ensejos exigem muito mais
e por isso fico marginal de costas voltadas à cidade

na placidez enganosa com que rio
enredo-me no inócuo diálogo do acobardado
vai-me definhando a vida de fio a pavio
porque desaprendi o vã oficio de sonhar acordado

já nada me resta da esperança
os meus relatos já não são de batalhas gloriosas
nada de digno me figura na lembrança
que justifique este cair de miríades de rosas

porque caem mas não me celebram em festa
e os que esmaguei nada dizem em meu favor
que às almas que degluti para apurar a minha gesta
faltava-lhes um tudo nada de amor

outro de mim mora agora comigo
e diz-se vencido de tudo a que chamamos vida
estende-me a mão e chama-me amigo
e diz-me que o cumprir do sonho é coisa para ser de fugida

mas que me importa o que ele diz
se de fugida ando eu
dos corpos outrora pujantes e que fiz moribundos
seres que me habitaram os paraísos que fiz a giz
e por isso tão frágeis mundos

sou-me assim
a fruição em plenitude de quem espera o que sabe não vir
tão livre de tudo e prisioneiro de mim
no permanente abismo onde nunca deixarei de cair



leal maria

segunda-feira, 1 de junho de 2009

e segui a direcção do teu olhar

e segui a direcção do teu olhar
mas não sei se fiquei para trás ou lhe passei adiante
porque não vi onde foi ele pousar
e perdi-te por nunca ter sabido do teu corpo ou o seu levante

podia existir o desejo de a ti regressar-me de alma desvirgem e sublime
como se fora Ulisses de volta a Ítaca ao filho e sua Penélope amada
deixar esta sede de imensidão que tanto me oprime
porque o vazio está à minha frente e o sonho é um tudo nada

mas quero renascer-me em ti e já não posso
tudo me prende aos lugares onde não estás nem eu estou
a terra nunca nos foi firme e o mar deixou de ser nosso
e se em deus nenhum acredito não diga a divindade que alguma vez me perdoou

de novo
levantar-se-me-ão os demónios que se desvaneceram quando pelas manhãs me nascias
cedo começarei a ouvir-lhes o ruminar a luz da tarde
os lugares serão de novo os lugares onde no antanho ainda não me existias
e a esmaecida memória mais frágil ficará por não ter onde te guarde

então sobre mim virá de novo a inquieta escuridão
quando tu nem eras quimera nem a tua forma por entre saudades a perdia
e anárquica ficará outra vez a carícia na minha mão
prostituindo-se em corpos secos de toda a poesia

diluir-te-ás no esquecimento do meu perpetuo voltar e ir embora
não serás este sentido que ainda me perdura
uma brisa preencherá de mais vazio o vazio da minha reflectiva hora
quando soçobrar ao desespero ansioso duma possível ternura

tudo em mim será de novo o nada sendo que nada é o que mais quero
nada ficará do que em mim foi tua sementeira
então deixará de haver a ausência de chegada no lugar onde te espero
e a solidão será a minha dilecta companheira

reinar-me-á uma paz nem que seja à força bruta
que o tudo mais é o resto de uma perpetua luta



leal maria

a soma de todas as fracções de que são feitos os instantes

sou a soma de todas as fracções de que são feitos os instantes
adivinhei a fonte das lágrimas que me agregaram ou subtraíram à felicidade
nos dialectos de tantos corpos amantes
ouvi o espanto que há nas palavras sussurradas com verdade

sonhei talvez o sonho na sua essência original
a ressurreição de todos os desejos que me precederam
uma paz entre o bem e o mal
no efémero sossego de todos “aqueles” que em mim pereceram

mas a mortalidade de mim não se ausentou
e o meu sémen não foi em esperança que se converteu
a demanda do maior sentido que outrora imperou
não logrou derrubar o tempo que o imenso muro ergueu

e em toda esta minha “fome”
ouço vozes iradas e de verve inflamada
um desespero na inquietação que me consome
pelas quimeras ancoradas no absoluto nada

mas o verbo continua meu e nele habita toda a minha intenção
hoje como ontem abjurando as nefastas retóricas e toscas sapiências
mas promessas são a espada de má aço que trago na mão
e há no adivinhar do fim como que um prenúncio de violências

quis o universo em nome da uma noção
escravizei-me na persecução do um ideal
espartilhado entre a escolha de um sim ou de um não
inventei novas nuances para pecado original

agora em todas as coordenadas me morrem os sonhos
oriento-me pelos azimutes da desesperança
embrenho-me nesses caminhos medonhos
onde o choro se ausenta até no anuncio do nascer de uma criança

sou o resquício da original substância do mundo
sou a má matéria de que ele é também feito
a espiral descendente de um fugaz segundo
a morte que sobrevem aos lábios sôfregos na doce suavidade de um peito

livres já não são os corpos quando a mim se dão
e a eternidade dissolve-se na fragmentação dos instantes
em que o coração se desenlaça do meu corpo e o corpo do meu coração
e os deuses deixam de invejarem serem também meus amantes

leal maria

vãs dialogos da divindade

Deus :
vem!! aproxima-te… eu te convoquei!
chega-te célere à minha mesa, pois sou o senhor!
reconhece-me como o único rei…
deslumbra-te com meu semblante inspirando temor.

Homem:
Perdoai, mas a verdade é que… venho incauto!
nem sei como aqui cheguei a este ponto do pensamento…
lavras-te contra mim algum auto?
que me recorde, era banal todo o meu sentimento!

Deus:
aaaaaaaaarrrhhh….
homem de pouca fé, que te não criei para isto!
porque arrogante, te perdes em perguntas e explicações sem que eu te as peça?!
o muito do mundo que já houveras visto,
cingiu-te de arrogância sem que o medo te a impeça …

Homem:
em verdade te digo: todo aquele que oprime o convidado,
merece menor consideração que o réptil mais insignificante!
se por convite se entende algo que ao hóspede vai ser ofertado,
de bom tom seria deixa-lo livre na conveniência do seu instante.

Deus:
como começa mal este teu comparecer perante mim!
achas-me complacente e começas logo a abusar da confiança!
lembra-te que sou o Alfa e Ómega… o principio e o fim…
de mim deriva toda a circunstância!

por certo, toda a minha infinita benevolência,
me faz com que seja parcimonioso a olhar para vós.
mas não me é infinita a paciência,
que não venhas a ouvir a minha mais tonitruante voz.

Homem:
mas quê… será por ventura, o teu vociferar ainda mais medonho?
e o teu semblante muito mais iracundo?
não te basta teres-me raptado á beleza de um sonho,
ameaças-me com o teu abismo mais profundo!?




que te pedi eu, para que agora me venhas cobrar?
foi-me nefasta aceitar a escravidão de te servir!
há muito que por ti os melhores bezerros ando a matar;
e somente nos beiços gordurosos dos sacerdotes senti o teu existir.

deixa-me em paz por agora…!
esvai nas divinas entranhas essa taça que tens tão cheia…
é tempo de te ires embora…
que o sangue que se derrama já te não premeia!

dizes-me tolo pelo amor que tenho à ciência.
interditas-me tudo e mais alguma coisa.
mas para ti é que me vai faltando paciência.
o opróbrio há muito que sobre a tua cabeça poisa.
vai-te!

Deus:
como te atreves a tal heresia?
julgas acaso que o renegares-me te abre algum paraíso?
eu era antes de haver o que havia…
a mim me basto… em mim tudo existe do que preciso!

vai-te… vai-te… dizes-me tu!?
e no entanto os teus pés pisam o chão sagrado do meu paço!
a fúria que agora me põe perante ti tão nu,
anuncia a força bruta do meu divino abraço.

há muito que me vens renegando amiúde…
e o mais das vezes te tenho perdoado na minha infinita misericórdia.
tenho-te feito regressar ao caminho da virtude,
erguendo-te da mais abjecta mixórdia.

mas tu… a personificação da ingratidão;
sais do caminho que diligentemente para ti tracei.
e ousas levantar para mim a tua mão,
fazendo tábua rasa do verbo que te anunciei como lei.

mas obedecer-me-ás mesmo que o não queiras!
a minha omnipotência assim o determinou!
apodrecerá todo o cereal nas tuas eiras,
e lançar-te-ei ao Hades d´onde nunca ninguém voltou!




Homem:
seja como o deseja a tua vontade,
se tal for necessário para livrar de ti a minha descendência!
que o deus perante o qual me prostro se chama liberdade
e a sua sabedoria emana da ciência!

não deriva de ti outra coisa que não o acaso…
aliás; ele é toda a tua essência!
é por ele que se faz a geografia do meu passo;
à revelia da tua propalada sapiência.

a mim só me rege a boa ou má sorte!
e mesmo que em vão eu a tente domar;
só desistirei quando sobre mim vier a morte;
então habitarei esse hades
onde és lesto a mandar muitos lá morar !

outra coisa não me resta de que percorrer o caminho que puder!
e para o fazer trincarei toda e qualquer maçã!
e da sabedoria tirarei o mal ou bem que eu quiser!
e esperarei sempre o raiar do sol pela manhã….


continuará…


leal maria