domingo, 18 de abril de 2010

dialectos gestuais

soam sempre mais alto
os gritos emitidos pelos silêncios dos gestos
tomando-nos de assalto
a ambígua leitura que neles fazemos de possíveis afectos

é sobretudo pelos teus gestos
que em mim é mais nítida a recordação da emoção por ti sentida
umas vezes embaraçados, umas vezes lestos…
pontuam indelevelmente uma etapa no percurso da minha vida

confesso que me forço a não olhar para trás
obstinado
cada paço que dou é um dramático apelo ao esquecimento
inglório esforço que minha alma faz
numa infrutífera tentativa de escapar ao vã sofrimento

bem me agarro á esperança do lugar comum: “o tempo tudo cura”
mas atraiçoa-me a memória
dos teus gestos quando lhes senti a tortura de uma contida ternura
tendo como pano de fundo o tempo e a sua natureza conjuratória

sim
o tempo conjurou contra nós
o tempo
e a circunstância das palavras impossíveis de se reproduzir pela voz

é triste quando só falam os gestos no dialecto dos seus silêncios
e sentimos limitado o vocabulário que para o falar se usa
inevitavelmente ficaremos suspensos
numa memória
que a inexorável passagem do tempo tornará cada vez mais injustificada e obtusa  


leal maria 

sábado, 17 de abril de 2010

Prelúdios da loucura

amiúde
muito amiúde me enfureço
e tão violentas são as fúrias que me assolam
se bem que
repentinamente as esqueço
as ruínas que delas resultam pouco me consolam

enfureço-me e é o caos que almejo
por nenhuma razão especial
apenas um singelo desejo
de ao bem se sobrepor o que em mim há de mal

e porque haveria eu de negar esta minha natureza?
é em mim tão intrínseca
amputar-me-ia ao a renegar
uma só certeza
o não saber o que afoito ando a procurar

amiúde
muito amiúde
sou parcimonioso na minha severidade
naquele exercício de pura virtude
de não ser  tão cioso do que tomo como a minha verdade
ouvindo razões que outros têm
permitindo-me a liberdade
de tomar como minhas
causas que me não convêm

amiúde
muito amiúde
transijo  em gestos da maior amplitude
embriagado nas mais explicitas incoerências
num ostensivo desafio às públicas boas consciências

umas vezes por bem
outras tantas por mal
noutras assim assim

verdadeiramente
 a única substância que o dogma contém
é o ser fundamental
para que à esperança sobrevenha sempre o desejável fim

para ser senhor do destino
ergo  minha taça em libação a todo o deus e às suas ideologias
usurpando-lhes sacerdócios em liturgias que não domino
numa superficial invocação de lágrimas em emotivas elegias

elegias com que os celebro depois de os ter morto
num indisfarçado sarcasmo pelas eternidades com que se investiram
encerro-os sempre num sarcófago torto
tão torto como as “verdades” com que nos mentiram


sempre que gritei: “filhos-da-puta”
nunca foi em surdina que o fiz
não negligenciei a oportunidade
de acabar com os silêncios a que circunstancialmente me impus
emergiram puras as cacofonias que criei desde a raiz
gritos fragmentados de almas que ultrajei ao habitar os seus corpos nus

a bem dizer
não odeio nem amo
não há espartilho onde caiba a intensidade do meu sentir
é o absoluto que a gritar chamo
loucura é o precipício para o qual ganho coragem em me deixar cair




leal maria