domingo, 30 de agosto de 2009

Inferno

Poema inspirado nesta execução da Associação Musical Amigos da Branca (ARMAB ALBERGARIA-A-VELHA) e a quem o dedico:



gutural garganta
que do abismo faz emergir
as furibundas vozes dos deuses já perecidos
perfilando-os
para a batalha que se ouve rugir
ante os medos
daqueles que em sacrifício vão ser oferecidos

rufa o tambor o seu prenuncio de morte
e os corpos
retesam-se em convocação das fúrias
lestos demónios
vão espalhando a má sorte
semeando no campo de batalha as suas acções mais espúrias

antecipam-se gritos de vitória
promete-se basta sementeira de silêncios e dor
em sangue se escreverá também esta história
colorir-se-á o solo com a sua cor

e nos dentes cerrados do homem
a quem amputaram aos olhos e ao entendimento a claridade
há holocaustos que o consomem
e neles se imolará por uma falsa verdade

choram homens choram mulheres e choram crianças
órfãos todos de algo que não sabem o que é
agarrados aos enganos das falsas esperanças
persistem no engano de quem lhes exigiu fé

já há deuses apeados do seu pedestal
ladeados cada um com o seu quinhão de corpos caídos
amputados da sua divindade
sobra-lhes o mal
recusam a liturgia dos vencidos


dos paraísos que prometeram
somente lhes vislumbra-mos o inferno
para isso nasceram
que pela carne retalhada habitassem o eterno



leal maria

Poema x...

foi tanto o que esperei
agora não sei amar-te senão na ausência
recordo as horas
em que sôfrego
teu nome chamei
ó amarga consequência

como agora me dói
cada letra com que te pronuncio o nome
um nada assim tão leve
que por dentro me rói
e no mesmo instante se some

etérea imagem
onde em vão
tento tactear a forma que te dá a minha memória
mas é outra a margem
outro lado do rio
que não me ouvirá grito de vitória

perdi-te nesse desejo
não houve um equinócio entre o teu lábio e o meu beijo
são minhas as mãos transidas
numa promiscuidade de fúria e paz
quimeras vencidas
sepultadas na cósmica poeira que me faz

ouve
apenas o silêncio
dá testemunho de que aqui estiveste
ficaram-me matéria de sonhos todos os gestos que fizeste
cada sorriso nascido à revelia da timidez e embaraço
cada desejo amordaçado de um abraço

os dias vão-me agora caindo um por um
numa inexorável soma de pequenos esquecimentos
talvez, quem sabe, um dia
do sentimento não sobre nenhum
e só sobreviva o eco destes meus lamentos

hoje amo-te porque não estás aqui
e os impulsos do meu corpo não te profanam
mas essa luz do teu olhar que outrora vi
ainda subsiste às escuridões desses limbos que de mim emanam




leal maria

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

esse horizonte onde te ocultas

aqui
neste alto promontório que é a saudade
tento ver no horizonte o teu recorte
ansiando captar a essência daquele precioso instante
em que o teu olhar houvera de me falar mais alto que a verdade
sentenciando-me o tempo à morte

mas o sol já se põe
nesse cardial ponto onde procurava de novo achar-te
nada me dá sinal de que lá me esperas
na alma aprisionada
tenho a carícia com que queria aportar-te
na esperança de ainda encontrar em ti aquilo que me eras

mas é cada vez mais ténue a luz
rubro como sangue se vai tingindo o céu azul
já nem a esperança me seduz
a escuridão conquista essas minhas terras ao sul

tenho medo
sim
tenho medo de agora nelas entrar
como se o meu amor fora um bem guardado segredo
e a barbara desilusão de não te encontrar
dê irrefutável testemunho do meu amar
sim
tenho medo

amei-te sempre como se fora minha escolha
como se impávido e sereno
me permitisse sofrer as agruras do amor
mas em cada poema há um verbo que para mim olha
e neles reconheço a semântica absoluta da dor

nada me valeu cartografar
cada ínfima parte da tua geografia
nada me valeu calcular
o declive magnético do teu azimute
sinto o amargo travo da palavra desperdiçada em vã poesia
acabei naufrago em ilha deserta sem nada ter que permute

não sei o caminho para ti e esqueci o de regresso
resta-me a deriva entre a indiferença e a solidão
e ficar totalmente converso
a esta quimera adiada que se assenhorou do vazio de minha mão

se cale o vento
ao passar por entre os sonhos onde te amei
se calem os homens que cantam os amores felizes
uma lágrima
tudo por uma lágrima das que nunca chorei
se ao sulcar-me o rosto também a sentisses


leal maria

domingo, 23 de agosto de 2009

divina fisionomia

de coisa nenhuma eu provenho
substancia-me a eternidade do nada
que é de nada a forma do meu desenho
não sou principio nem fim de estrada

meus caminhos levam a lado nenhum
e é algures em nenhum que meu corpo não existe
não sou muitos nem só um
na minha inexistência não sou alegre nem triste

para que melhor me entendeis
olhai para a mulher Afegã
e por ela conhecereis
minha fisionomia na sua vida tão vã

adivinhai-lhe os silêncios impressos
no rosto sulcado a desespero
torturada pelo medo de não ter as virtudes
pelas quais lhe prometeram o paraíso
mas é aqui, no absoluto nada, que a espero
e para isso nenhuma virtude é preciso

imaginai essa mulher
com o corpo ornamentado de cicatrizes que não mereceu
e a quem fizeram escolher
entre a morte ou o nada ter de seu

o seguidor foi quem lhas fez
para que soubesse o valor da obediência
declarando-lhe ser indigna da perfeição da sua tez
porque assim o determinava divina ciência

adivinhai-lhe um semblante
de quem deixou de acreditar
na possibilidade de haver um outro mundo
de muito mais cores
porque nunca os olhos ousou levantar
para que não lhe sentissem secretos os amores

vede que se levanta para os dias
como quem toma a direcção da sepultura
na sua suja miséria não germinam poesias
e se alguma há, mal lhe sobrevive a ternura

ama os filhos como quem tem fome e come pão
sua mãos
são ferramentas onde não nascerá qualquer carícia
todas as vezes em que é possuída
afaga-a um duro e frio chão
escravizando-a entre os vermes e a alheia malícia

os dias nascem e com eles mais putrefacta fica a sua esperança
e interroga-se sobre a razão do seu viver
se a efémera liberdade que traz na lembrança
só lhe traz o desejo de morrer

a vontade lhe seja feita
que vale muito mais a morte
que essa vida tão cheia
de resignação pelo violento destino que lhe calhou em sorte

olhai-a e sabei o que é o nada
nessa miserável vida vereis aquilo que vos quero mostrar
toda a divindade só tem a finalidade
de na escuridão vos aprisionar

é esse o rosto que me deram
e no qual tantos se prostram em reverência
porque assim o quiseram
homens inflados de iníqua sapiência

neste vazio onde me acho
não me chegam os clamores de quem me chama por um dos muitos nomes
minha má sorte não ter nascido de fêmea e macho
por mim vos emprenharam de bastas fomes

mas que culpas tenho eu
se a minha essência é esse nada que sou
se algo alguém vos prometeu
não podeis dizer que em mim alguma coisa se achou

dai-me a paz da inexistência
estou ébrio de tanto sangue que por mim verteis
furtai-me à audição da vossa eloquência
que não fui eu que vos expulsei desse paraíso que tanto quereis


leal maria

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

naufrago

nem sei se o tempo marca passo
ou eu é que me perdi
nos acidentados terrenos de minha alma

tudo a requerer a costumeira calma
e eu afoito
corpo feito num oito
à custa de me preparar
para batalhas de guerras que há muito acabaram
quando somente sobrevive a podre paz
que os anos em mim semearam

“tem calma rapaz!”
digo-me
no meio do tumultuoso silêncio dos pensamentos
e ali me deixo
torturado nesses poentes momentos

mas prevalece sempre esta ânsia de te ver
como se fosse um tem que ser
à revelia da tua perene ausência
à revelia das intermitentes distâncias
desafiando essa certa ciência
que é o ser-se vassalo das circunstâncias

o ali estares
no espaço que medeia o nada e um beijo roubado
a possibilidade de um filho em ti por mim gerado
dos lábios sobre a tua carne saciando-me a fome
o meu imperceptível sussurrar do teu nome
enquanto os deuses fechariam os olhos
às sucessivas carícias que viriam aos molhos
nascendo e desaguando em nossos corpos emaranhados

cercados
por muros pelo sentido erguidos
perseguidos
encerrados numa ilusão de eternidade
fomos expulsos dessa cidade
que antes nos houveras feito passar as suas portas
franqueando-as o teu olhar prenhe de meiguice
eclipsando a horas mortas
como se toda a luz possuísse

ando a vaguear
e urge aportar
a qualquer porto que me dê abrigo
um sentimento antigo
que me resgate a estas águas em que muito naveguei
que tempestades me sobejam pelo muito que já te amei


leal maria