sábado, 27 de março de 2010

retórica dogmática

que sei eu afinal,
para que possa dissertar perante vós?
temo que vejais uma parte do todo que faz o mal,
no tonitruante som da minha voz.

mas escutai-me...
escutai-me para lá das palavras com que vos tento arregimentar.
dai-me…
sim; dai-me a possibilidade de vos ouvir a cantar,
o hino da minha causa maior.
para que o manancial das vossas vontades venha a mim desaguar;
pouco importando se a quimera que vendo se alimenta do vosso ódio ou amor.

seguirem-me é o principal mester de toda esta minha lavra.
levar as vossas vontades para onde ordenar a minha.
sejais as letras com que escreverei a imponente e definitiva palavra,
que todas as outras amesquinha.

que força terá então o que outros antes de mim disseram?
vê-los-eis  soçobrados perante as razões que agora vos dou.
forçá-los-emos a abandonar os dogmas em que creram.
personificados em mim, ocupareis o trono que o filho da besta outrora ocupou.

aaaah… seremos grandes; seremos a imensidão!
o universo reger-se-á pelas nossas determinações.
executar-se-á a justiça ao mínimo gesto da minha mão;
na interpretação que farei dos vossos urros de multidões.

que exércitos haverá com coragem para sitiar-nos?
que divindade ousará então dizer-se grande demais para habitar a nossa cidade?
fugirão como cães escorraçados os que conspiram matar-nos.
possíveis serão todas as glórias perante a nossa sagacidade.

sim; sois um em mim.
a multiplicidade potenciada pela concentração .
ao principio precede-o sempre um fim…
erguerei para vós um paraíso na esterilidade deste chão.

cantai irmãos!
cantai bem alto a nossa fraterna aliança.
cerrai firme as mãos;
para que firme seja o golpe da nossa lança.




leal maria

quarta-feira, 17 de março de 2010

Fisionomias da memória

os rostos
que perante mim vão desfilando
(há-os para todos os gostos)
cada qual
com as singularidades com que a minha má memória os foi dotando
ser-me-iam anónimos e impessoais
nada tendo diferente dos demais
não  fora dar-se o caso
de serem a cronologia dos meus afectos
uma medida de tempo que criei para espíritos como o meu
um tudo nada circunspectos
fantasmas que habitam  sonhos que o tempo quase desvaneceu

a nenhum posso chamar
porque a todos esqueci o nome
somente me perdurou aquela sufocante ansiedade
em que tudo  à nossa volta se some
e  de livre vontade
abdicamos da liberdade
deixamo-nos imolar num fogo que violentamente nos consome


pergunto-me por vezes
o que aconteceu ao corpo que a cada rosto sustinha
que destino  lhe cabe cumprir
(e esta é uma pergunta muito minha)
quando à memória convocada é somente o rosto a surgir

amputado  abaixo do pescoço
ao rosto
facilmente  se  lhe apreende a mais íntima fisionomia
saboreamo-lo como delicado mosto
reconhecemos-lhe sem esforço a forte possibilidade de poesia

mas é somente agora
extemporaneamente
que tenho essa suficiente sensibilidade

e urge ir-me embora
que saudade sentida tão  intensamente
abala até as fundações da mais convicta probidade




leal maria

sábado, 13 de março de 2010

estrada romana

agradam-me as pedras que calcetam estradas ancestrais.
há no lustroso polimento de cada uma,
a indelével marca  da pretérita passagem de alguém.
alguém que precedendo outros mais,
decidiu um primeiro passo para ir mais além.

e o tempo,
esse  carrasco que se presta ao subjectivo;
que a todos ceifa,
mas  a cada qual deixa escolher como pretende a intensidade do golpe;
nelas admite a possibilidade de nada ser definitivo.
antevemos-lhes sonhos,
que podem ser alcançados  a pé; de carro... num cavalo a galope.


faz sentido!
uma medida inexacta para tudo o que existe.
estratégia ideal para que nos adaptemos há forma que nos impõem.
ter a ilusão de sermos aquele que resiste;
ainda que todos venha-mos a tocar a música,
que em diferentes nuances, os anos a passar compõem.


por isso gosto dessas pedras que o tempo lustrou.
falso testemunho da viabilidade do eterno.
saber que alguém quando ao seu destino  chegou;
pôde ter a ilusão de ir mais adiante,
se o abraço de quem o esperava não foi suficientemente terno.

a estrada que calcorreio... ainda nela há pedras agrestes.
entremeiam-nas outras mais polidas.
na suas bermas,  oníricas figuras com cerimoniosas vestes,
ostentam fisionomias para a possibilidade de outras vidas.

olho para trás e nem sei se me arrependo dos cruzamentos que  lhe  ignorei.
recusei a indecisão perante o desafio de bifurcações.
nada me indicava as coordenadas do que então busquei.
mal-vindo nuns lugares,
noutros, para me darem as boas-vindas, constituíram-se comissões.

não me atemorizei nem me senti intruso.
tão pouco fiquei agradecido.
que à vida tenho-a fruído num hábito de mau uso;
couraçado na petulância de quem acha que tudo lhe é devido.

em mim se desenhou a anatomia do ódio e do amor.
conquistei e fui também derrotado.
insistente migrante entre a dor e o prazer e o prazer e a dor,
eis-me no meio estrada onde se desenrola uma batalha, sem saber qual é o meu lado.


leal maria 

terça-feira, 9 de março de 2010

arco-íris de néon

nas ruas da cidade que adormece
é o vazio que predomina
para o absoluto vazio pende o olhar que esmorece
na puta que pode ser mulher ou menina

os néon atraem para a esquina do seu poisio
almas incautas
aureolando-as na contínua ilusão de intermitências em milésimas de segundo
almas habitando corpos que são podres pautas
onde garatujará a triste melodia
da sua  irreversível metamorfose em apêndice do mundo  


emoldurando vãs promessas de  felicidade
os néon
não logram devolver-lhe uma réstia da luz que outrora lhe denunciaria os sonhos
decrépita por uma abreviada mocidade
prazeres alheios
fruem-lhe  o corpo materializados em urros medonhos


 resquício
incómodo tolerado pelos demais
vida em perpetua queda no precipício
desamor e desprezo
desde sempre são os seus companheiros mais banais

evita perscrutar o olhar dos homens com quem se deita
pretende-se imune ao murmurar de fingidas ternuras
os alicerces que sustêm a sua vida imperfeita
desmoronar-se-iam definitivamente  perante um afecto sem censuras

sabe-se derrubada ao chão
esvaí-se de tudo a que possa chamar-se esperança
paradigma de desespero e solidão
precocemente envelhecida sem ter sido criança

resignada ao  que em sorte lhe calhou
há muito desistiu
de almejar mais do que uma letárgica paciência
na droga encontra um vislumbre do paraíso que procurou
efémero exílio nas acidentadas geografias da sobrevivência




leal maria

segunda-feira, 1 de março de 2010

estádio de sítio




o mundo, esse,  não acabou.
sucedem-se os dias uns aos outros na sua ancestral constância.
nada do que me faz pertencer-lhe se alterou;
para além de uma ou outra mudança de circunstância.

a chuva cai e sacia a terra;
o sol surge e estimula o emergir de frutos que se anunciavam em flor.
lá, muito longe, há mais um contributo para a perpetuação da guerra;
matam-se os Homens enquanto outros se sublimam pelo amor.

constroem-se novas cidades;
derrubam-se e erigem-se outros muros…
chora-se de alegria e de saudades;
dias felizes entremeiam  outros mais escuros.

algures, um pai, segura orgulhoso, um futuro em aberto nos seus braços.
à sua alegria não a contaminará os gritos desesperados  de uma mãe.
nem a loucura de quem para o precipício dirige  os seus passos;
porque as coordenadas por onde andou o não ancoraram a alguém.  

enfim; tudo permanece igual.
eu, uns dias bem e outros menos mal.
seria feliz, não fosse  a memória;
que me dá a ilusão de faltar de um definitivo e irreversível epilogo para esta minha história.

tão difusas são-me já as recordações…
no deslumbramento não tive a acuidade para o pormenor.
submerso num caleidoscópio de ilusões,
fui mais que eu nos profundos abismos do amor.

nada em mim é sublime;  épico ou heróico,
quando a tudo se sobrepõe a tua ausência.
tento ser estóico,
mas é sempre maior a capacidade da minha resiliência.

tendo sempre a voltar à mesma forma.
em vão tento reformular o que escrevi numa caligrafia de letras tortas.
incapaz de me subtrair à opressiva norma,
abro  e torno a fechar sempre as mesmas portas.

sim, tudo é tão difuso…
um permanente acordar estremunhado.
sonho-te e desse sonho faço mau uso,
ao alimentar um sentimento que se deseja acabado.

com exactidão,
recordo a luminescência no teu olhar;
e também como sorrias.

não o sabia preludio da minha mais intensa emoção.
que tantas e tantas vezes  o iria sonhar…
perder-me nas coordenadas secretas das suas geografias.

sentir…  
retornarei ao  dia que antecedeu a violenta viagem que encetei?
de lá para cá ando a fugir,
à crua realidade das circunstâncias em que te encontrei.


leal maria