sábado, 26 de setembro de 2009

desperta a manhã e surpreende incautos os amantes



sabe que muitas das vezes acordo para os dias
e não estou para poesias

emirjo na manhã sob uma poeira de desencanto
ao poema perco-lhe o sentido
fraqueja-me a voz a meio do canto
e dou por mim a lamentar tê-lo construído

afoito
procuro ajuda àqueles com que me habitei em cidade
e eles são-me uma imensa multidão
anónimos
nascidos da fornicação entre minha alma e a curiosidade
foram criados para me diluírem a peçonhenta solidão

mas inevitavelmente
ela logra tomar conta de mim
absorto que estou de tudo o resto quando neste oficio de sentir
perante o precipício de um não em contra-ponto a um sim
dou sempre o evitável passo em frente e deixo-me cair

no entanto, são virgens as tuas mãos
quando pela manhã sobre as minhas pousam
e há no teu olhar um solstício de verão
claro e longo dia que fruir os deuses não ousam
porque a pureza mora perfeita na sinfonia do teu coração

resgata-me o abraço que me dás
desperta-me a palavra que sussurras em lânguida liturgia
suavíssimo despertar de manhãs
em que de novo me embranqueço para a poesia

sim
são virgens as tuas mãos sobre as minhas assim tão mansas
confesso que nelas se me desenha o mundo exterior a cores
e tu persistes nessa esperança de que nunca te cansas
esperando de mim uma altruística permuta de amores

ainda assim
a noite resguardar-me-á novamente em frio e desamor
para que os grilhões desses teus encantos me não prendam
é há noite que disseco a tua anatomia ao pormenor
no intuito que os sentidos da alma aos do corpo se rendam

no teu sexo me encarno em puro egoísmo
faço-me senhor do agora e do depois
que o passado não me proporciona o almejado heroísmo
que é unir-me a ti e continuar a ser somente um de dois

é neste intermitente castrar de memória
que me vou furtando à entrega absoluta
em cada dia és-me renovada história
e cada dia mais profunda e irresolúvel a minha permanente luta

quero sempre as manhãs nascidas da incerteza
ler o poema que no teu corpo escrevi e não me reconhecer
apagar todo o sinal com que te profanei a beleza
para que em cada noite escreva outro tempo e de novo em ti me faça renascer



leal maria

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

liberdade de expressão

tristes são as palavras
quando as habita a vacuidade
escravas de quem nada tem ou sabe dizer
são largadas em anárquica liberdade
destinadas a definhar no limbo das frases sem sentido
onde acabarão por morrer

com o argumento de recusarem todo o espartilho
negligenciam dar-lhes o necessário rumo
que límpido e claro
não lhes ofuscasse o brilho
semear frases é um levantar paredes a fio de prumo

não se corta uma oração a meio
só para lhe dar a forma de poema
como se a poesia fosse um ressequido seio
e nos nutrisse sem a suavidade do fonema

toscos
assanham-se por toda a critica contrária
solícitos a pôr o ferrete da inveja
são pedantes na sua posse de eminência luminária
castram-se de toda a crueza com que se deseja

masturbam a alma em segredo
porque ínfima a substância
há que ter delicadeza
ciosos guardiães de um degredo
vivem para cá dos Homens
contaminados de tanta e tanta pureza

heróicos sobreviventes do aborrecimento
barricados atrás de uma pseudo cultura
vão moendo o mesmo sentimento
na esperança de lhe fazer surgir algo parecido com ternura

deixemo-los comprazidos nos seus rituais onanistas
são agora ubíquos e máximo denominador comum
depois de tantas conquistas
no terreno da liberdade há sempre lugar para mais um


leal maria

domingo, 20 de setembro de 2009

resistência

vieram pela madrugada
encobertos pela noite e as roupas tão escuras
não dormia é certo
mas letárgico, tão saciado de ternuras
encontraram-no estéril como um deserto

não fez um gesto que os contrariasse
deixou-se levar sem um grito ou uma imprecação
resignado que dele apenas ficasse
um eco de gemido
no corpo onde tinha deposto toda a carícia encerrada na mão

dali em diante couraçar-se-ia com a determinação
e de nada lhe valia resvalar para o ódio
ao torturador pouco lhe importa a anatomia do coração
que sentimentos não o fazem atingir o pódio

ele gosta é de torcer e esmagar dedos
eleva-se aos deuses por sentir ter um poder tão discricionário
mesmo quando são vãs os segredos
são sempre eles a suprema glória do torcionário

e deu-lhe segredos, ó se deu
disse-lhe tudo o que queria ouvir e já sabia
falou-lhe de planos com todos os inúteis pormenores que lembrou
somente omitiu o quanto inócuo eles eram e a liberdade que nele explodia

decepado por decepado
pouco lhe importava que fosse o dedo ou toda a mão
importava que fosse lembrado
como aquele que soube dizer não

recusava uma vida amordaçada
acocorado se vive de costas para o futuro
a vontade era-lhe o duro aço de uma espada
com ela derrubaria todo o muro

havia que resistir até ao fim
fugir ao desespero e abandonar-se à dor
fechar-se lá no mais profundo de si
no lugar onde germinara a liberdade e podia voltar a surgir o amor

já cansados, deixaram-no ali moribundo
vangloriando-se do seu total abandono
tristes
não sabem que um Homem é dono do mundo
quando recusa ser cão segurado pela trela do seu dono




leal maria

sábado, 19 de setembro de 2009

Holocausto a Eros


as sombras amputadas pela aurora
que diáfana entra pela janela
anuncia a regular hora
em que do céu se expulsa a ultima estrela

sombras prenuncio da manhã que em plenitude chegará
afugentam as que se embrenharam nos interstícios da minha solidão
acolho-as na no desagrado de saber que o breu já não disfarçará
o estéril deserto em que se transformou a minha mão

há um sussurro que escuto
mais silencioso que a quietude da noite cujo sepulto principia
cacofonia
suavemente ressonada no aconchegado regaço de Morfeu
sinuoso corpo que não é o teu e bem podia ser a minha poesia
mas não nos dá a vida tudo o que o sonho nos prometeu

em todo o caso, ando mercenário
um corpo
já não me é mais de que um caminho que me desvia do essencial
mas continuo a persistir nesse cenário
como se representasse a dramaturgia fundamental

amo agora consciente
na egoísta atitude de quem dá somente para receber
omnisciente
sorvo sôfrego tudo o que intuo para lá do que posso ver

desbasto corpos como se amanha uma plantação nos campos
liberto-os de todas as “ervas daninhas”
reconstruo-os
prendendo-lhes as minhas mãos como fortes grampos
numa arquitectura
onde lhes tomo as penas sem as permutar pelas minhas

ausências substanciam-me
preenchem-me ainda de mais vazio
as sombras de todas as noites vir-me-ão novamente habitar
resquício de um sonho periclitante
preso à vida por um fio
meu corpo dado em holocausto de desejos, o deus Eros irá engordar


leal maria

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

vã glória dos caídos

de vitória em vitória
embriagado na ostentação de supremacias tão dispares
laureado em glória
caminhou em triunfo com os seus pares

habituara-se a investir-se da condição de deus pela força da espingarda
o seu corpo treinado
era uma quase perfeita máquina de guerra
da vida à morte ia-lhe na alma pouco mais de uma jarda
de todo alheado dos sonhos a que dava fim
quando aos corpos que os albergavam fazia cair por terra

pouco temia
com o tempo ficara indiferente ao cheiro da carne retalhada
conseguia até distinguir
quem fora fraco ou forte perante a morte
forçava-se perante a miséria a não sentir nada
audaz, tinha-se como filho da boa sorte

até este dia
em que se achava no chão esventrado
como acontecera não o sabia
de perpetrador de golpe-de-mão tinha passado a emboscado

o desespero que de si julgava ausente
emergia por entre a orgia dos seus sentidos em confusão
e no meio do caos premente
logrou ver suas entranhas e decepada uma mão

chorou num grito contínuo e inútil de criança
já uma amalgama vermelha misturada com o pó
esvaído de sangue e esperança
gritava pela mãe e sentia-se tão só

o fim demora sempre a chegar quando por ele se espera
tudo zunia na sua cabeça levando-o à loucura
a morte espreitara mas não quisera
ceifa-lo sem que sentisse o que era o antípodas da ternura

foi um punhal que lhe abreviou o sofrimento
dando termo aos seus dias
e um ultimo gemido como que um lamento
abafou a prece de quem o matou
sussurrada ao Mohamed das profecias

assim morreu o soldado pára-quedista do Milwaukee
nos arredores de Cabul
à distância de 11 084 quilómetros do lugar onde fora um homem de paz
sem que o consolasse o céu tão azul
sacrificado no mesmo altar onde muito da história se faz

camaradas o virão buscar
enxotarão as moscas de que o seu corpo estará pejado
cantarão uma canção de guerra num tom de embalar
e haverá lágrimas a sulcar o rosto do amigo consternado

será enviado de volta aos pais envolto na solenidade da bandeira nacional
depois de devidamente identificado e cumprida toda a tramitação
terá direito a sentida elegia no jornal local
e a unguentos que lhe disfarçarão a putrefacção
para que os amigos lhe possam ainda vislumbrar alguma beleza no rosto
e assim o possam invocar por entre circunspectas palavras de circunstância
sentindo o sincero desgosto
de quem vê inerte um amigo de infância

a noiva estará a um canto
num choro contido e algo sufocante
mal refeita ainda do espanto
segurar-se-á firme na reconfortante mão
de quem era agora amante



leal maria

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Naqueles dias os deuses fecharam os olhos e deixaram livres os Homens. Nem isso lhes valeu… a dor foi o costumeiro destino

trasladaram para o campo das palavras
todos os silêncios que os haviam sepultado
entre eles havia como que a quietude de um cemitério despojado de ciprestes
em vão procuravam no bárbaro dialecto em que se entendiam
um único significado
que os resgatasse a esses finais momentos tão agrestes

mas o derradeiro acto desenrolava-se num dialogo de gestos anárquicos e olhares sem norte
o tempo transformara-se numa incomensurável imensidão
somente lhes subsistia uma fé cega na persistência do renegar a má sorte
digeriam como podiam a consternação

interessava contudo evitar as lágrimas e disfarçar a falta que cada um ao outro faria
urgia que viesse o momento das definitivas despedidas
para que depois dessa avassaladora razia
retomassem o anterior rumo das suas vidas

o sonho esboroava-se ali mesmo, diante da incredulidade de cada um
o dorido nó dentro do peito era o que mais prevalecia
as promessas eram somente um conveniente pró-forma que os não levaria a lado nenhum
amputava cada qual o seu quinhão ao ultimo verso da poesia

haviam permutado tudo o que havia a permutar
numa equidade sem reservas ou embaraços
amaram como não houvera outros a amar
foram sinfonias criadas no restolhar de beijos e abraços

suspiraram nos braços um do outro como só se suspira em segredo
olharam-se como se cada um talhasse o outro à medida do seu desejo
resgatavam os corpos ao anonimato com um subtil e simples toque de dedo
e o amor que entre eles havia chegava e era de sobejo

tanto para agora ser tão pouco
como se tudo não fora mais que um reflexo oposto do que realmente houvera
sim, duvidavam que tivesse acontecido
o mundo tinha ficado louco
e albergara a loucura que qualquer um quisera

se assim não fosse, porque estavam eles ali mudos no espanto
que é ver todo um edifício de afectos ruir
sem que haja um grito em voz embargada pelo pranto
e somente uma premente necessidade de fugir

ei-los agora
sem outra alternativa, balbuciaram um tímido adeus
cifrados ainda assim, naqueles códigos que eram tão seus
sem nada mais interessar dizer
cada um dirigindo-se para o destino que escolhera
desenfreada demanda que dali em diante iriam viver
na vã tentativa de apagarem a tatuagem que um obsessivo amor na alma lhes fizera




leal maria

domingo, 13 de setembro de 2009

no princípio era o verbo mas quando o fim se anunciou o amor surgiu

o rosto de rugas sulcado
é como que um reflexo das terras que outrora lavrou
as intempéries o sol e o vinho
encarregaram-se de auxiliar a passagem do tempo
havia forçado ao exílio o mais profundo sentimento
desvaneceram-se-lhe lembranças de todas as batalhas que travou

se umas ganhou, muitas mais houvera perdido
e todas amassou na mesma mescla do sentido
para depois as deitar fora
a boa e a má hora
na impossibilidade de dissecar uma por uma
optou pelo método menos doloroso que era ficar sem nenhuma

voluntaria-se como personagem trágica e cómica
no meio de uma chusma ululante
progressão aos trambolhões
emergir triste e triunfante
num indignado grito: “os colhões”
para logo invocar as lágrimas ao olhar baço
ficando quieto como se esperasse um abraço
que nunca vem
porque entretanto tudo deserta sem ficar ninguém
deixando-o só na sua solidão
na mão um amargo bocado de pão
que leva à boca sem convicção
só para se furtar à imobilidade
que o denuncia um pobre actor sem palco nem estrado
ali no meio de uma decrépita rua da cidade
a poucos metros onde repousa o corpo martirizado
remoendo os dias de incerteza
como se fora eterno o tributo a pagar à tristeza

do céu
o sol de verão dá lugar a um prenuncio de inverno
e ele entristece ainda mais
porque sabe ser de água e frio o inferno
quando o que chama cama dá lugar aos lodaçais

mas aquele dia decidiu que já ninguém lho ensombrava
apaixonara-se
assim sem mais amava
o rugoso granítico do seu espírito renovara-se
num polimento rejuvenescido
alienada Fénix da podridão renascido
porque assim que o viu
uma jovem estudante lhe sorriu
e sem que no seu rosto houvesse o mínimo repudio ou receio
estendeu-lhe às mãos um pão que comia
com a mesma solicitude com que uma mãe dá ao esfomeado bebé o seio
com a naturalidade com que o seu sorriso se parecia a doce poesia


leal maria

sábado, 12 de setembro de 2009

Fui tomar o pequeno-almoço à confeitaria da avenida e estava lá uma gaja boa

elevando-se em sinuosos rendilhados,
o vapor
dava consistência ao agradável cheiro a café que da chávena emanava.
acima,
com o olhar e a suavidade do rosto na revista feminina repousados
permanecia alheia ao que a circundava.

mas impressionaram-me as mãos!
ali, cruzadas sobre a perna com discreta elegância.
dedos finos e alvos a pender para o chão;
disponíveis para qualquer eventual circunstância.

deu-me em adivinhar a carícias que nelas tinham emergido…
os sexos agarrados com sofreguidão…
as táctil cicatrizes do anteriormente sentido…
pois… uma mão é uma mão!
mas interessara-me as múltiplas possibilidades das suas anteriores vivências.
saber-lhes com que moldura de gestos ornamentaram discursos cheios de eloquências .
a cor dos cabelos das crianças que acariciaram…
outras mãos que agarraram…

mãos não falam e nada contam,
se não lhes procurar-mos a história no olhar de quem as fruí.
e a despeito da censura implícita nas que apontam,
dei-lhes o beneficio em aceitar a primeira impressão que intuí.

intuí-lhes águas vencendo os ínfimos acidentes dos dedos;
anárquicas e incapazes de se conterem na côncava que haviam formado.
depurando segredos,
que as denunciaria terem amado.

intui-lhes coerentes paradoxos nas suas muitas incongruências.
soube-lhes igual a intensidade no agarrar do punhal e na espontânea carícia.
como muitas outras, tão eivadas de minudências:
habitavam-nas a ternura a raiva e a malícia.

tanto foi o que lhes soube, que vou-me abster de o contar.
convém sempre ter alguma reserva com que segredar.
mas posso dizer que as desejei para mim e me propus ir com elas até ao fim.
daquele dia bem entendido; que não me podia demorar…
à minha espera tinha os “meus”!
em todo caso ela também se levantou e saiu;
não sem antes me dizer um discreto adeus.

sobre a mesa ficou, desprezado, o café.
já frio, dentro da chávena de tosca porcelana.
e nela a delével marca de uma fé:
batom vermelho desenhando a promessa de um beijo,
que a irrepreensível brancura profana.

eu,
levantei, paguei e fui-me embora.
à nascença abortava-se-me um desejo…
o sol, impingiu-me todo o expoente da sua claridade naquela matinal hora…
pássaros chilreavam com todo o seu ensejo.

de repente, tive a progressiva consciência de uma e outra mão
e ao as sentir vazias, soltei uma imprecação…
havia esquecido o jornal!
e que prazer me estava a dar ler aquela crónica cheia de ironias mas ainda assim sentimental…
mas a gaja era mesmo boa, lá isso era!!


leal maria

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

variações divagatórias para um desesperado

que pretendes nessa fuga para onde vais?
se calhar o porteiro nem te deixará entrar…
sem companhia será difícil!
ao menos aborda alguém antes de lá chegares.
podes até fazer promessas de amares…
nunca se sabe se não será outra alma cansada de solidão
e nessa circunstância te dê sem hesitar a mão.
sei lá... talvez peça que lhe pagues um vodka com laranja.
mesmo que não tenhas dinheiro suficiente, na altura alguma coisa se arranja!

em todo caso, melhor é embrenhares-te no abismo com companhia.
podeis até dissertar acerca da vã glória da poesia.
e quem sabe, a conversa não venha a resvalar para o sexo...
afinal, os grandes encontros começam com monossílabos sem nexo!

que pretendes nessa fuga para onde vais?
órfão de ti, sentes-te como se tivesses perdido os pais.
absorto, são-te inócuas as minhas palavras.
batem na tua indiferença e caem por terra...
posso até jurar que dentro de ti vêm sons de guerra!
uma guerra sem trégua e fratricida.
não matarás porque não és de natureza homicida!
tudo o que queres é encontrar-te no preciso ponto onde te perdeste...
onde te faltou o chão e julgas-te que morreste.
mas procuras-te e em tudo te desencontras…
a loucura até já te faz ver promessas de amor nos olhares desprovidos de vida dos manequins das montras!

que julgas encontrar quando não houver mais possibilidade de fugida?
duas opções são postas à tua disposição:
o absoluto nada de uma morte fingida,
ou levantar-te e cingir firme o gládio na mão.

mas nada tenho com isso!
é-me fácil dos problemas alheios manter-me omisso.
o mundo será sempre o que foi:
algo a que nos agarramos mesmo quando dói!
ciosos da nossa mesquinhice...
esquecidos do que outrora fora-mos antes de sermos o que agora somos.
despreocupada meninice...
o principio do caminho que tomamos mas cujo ao seu final nunca fomos;
porque entretanto alguém nos abordou
e, no meio da conversa, esquecemos a original intenção e o sonho abortou.

mas que estou eu para aqui a dizer?
já me apetece ir nessa fuga que fizeste tua!
oposto a nós vem, solitária, uma mulher,
deixa-a para mim, a ver se esta noite ainda a ponho nua...
quem sabe não tenho sorte com esta luz reflectida pela lua;
que até me faz mais favorecido;
eu até sou bem parecido...
e forte como um touro!
e na cama alguém já me confidenciou ser a minha arte ouro!
nem sabia o que queria ela dizer com isso.
mas também não é preciso!
podemos sempre optar por ouvir o que somente nos enobrece...
palavras há que, aos as ouvirmos, nos apodrece.
e um bocadinho hoje e outro amanhã,
far-nos-á cadáveres e cumprir-se-á o que prometeu Jeová:
que os descendentes de Eva morrerão por ela ter trincado a maçã!
a Eva que (vi numa gravura) até era uma cachopa jeitosa,
(bem sei que não se deve falar assim de uma mãe, mas sou ateu)
fez o Adão de morcão com o seu jeito de dengosa.
e com isso foi expulso do paraíso que deus outrora lhe prometeu.

mas deixemos isso por agora,
e vamos-nos embora
rejeitastes estes espaços e levaste-me a fazer o mesmo...
quando me embrenho em algo levo tudo a esmo!
inclusive a morte!
só ainda não a logrei agarrar porque ela anda com sorte…
fui à guerra a ver se lhe sentia o gosto,
só tive pena de estar fora do país no mês de Agosto.
por causa das miúdas giras em bikini na praia.
mas em Sarajevo há também cada catraia!
e digo-te ponto por ponto
em nenhuma me pus a troco de algum conto.
comigo só há permutas de corpos e sentidos.
senão tivera eu muito mais que os já tidos;
e com o euro estaria na ruína!
para mais com esta gripe suína…
ou é das galinhas?
más furtunas as minhas...
já não sei a quantas ando!
no fundo, já vou a teu mando…
mas à superfície sou ainda eu, porque me chamei e a mim me respondi.
só os lugares por onde andamos ainda não os reconheci.
por certo perdemo-nos no desespero...
o objectivo que levamos tu o sabes, não sabes!? Eu espero…
aaah! pouco me importa!
era a coisa já torta!
e eu que comecei por te falar,
com o intuito de à perdição te resgatar…
estou à deriva de tanto divagar.
aaah… já me lembro!
para onde vais? Foges de alguém ou algo?
em todo caso o destino não é mais que a aleatoriedade das sortes.
nada do mundo esperar só nos faz ainda mais fortes…
imunes até à desesperança!
Importante é o caminho porque o objectivo nunca plenamente se alcança.




leal maria

porno grafia

A noite está quente e há luar.
Dizem que noites assim dão bons poemas.
Eu, que não sou de verve fácil;
para fazer poesia, deito mão a quaisquer esquemas.

Pensei em a aproveitar para dizer qualquer coisa
a respeito desses teus olhos que andam sempre a brilhar...
Mas cá fora é cada bicho alado que em mim poisa,
Que melhor é pôr-me a andar.

Aqui,
recolhido no conforto desta sala razoavelmente bem decorada,
tento dar persecução ao que me propus.
Vêm-me palavras à mente
que invariavelmente começam com um: “minha amada…”
Mas tudo o que me preenche o ânimo é estes corpos nus.

Corpos nus transbordando uma libido latente.
olhares travestidos num lânguido convite.
Arrepio que à flor da pele se sente...
Meu corpo dando sinal de si sem que nada o evite.

Mas queria fazer-te um poema de amor.
Para isso fui acordar palavras adormecidas.
Que numa bela metáfora desenhassem numa outra cor,
o teu harmonioso corpo a quem todas as vénias são merecidas.

Esta tumefacção entre pernas é que não me deixa!
Pudera eu libertar-me deste abismo orgíaco em que me embrenhei.
Não sabes quão poderosa arma é um peito e rabo generoso num corpo disfarçado de gueixa…
Olvida-se-me de todo o amor que por ti emprenhei.

Quisera o amor no corpo entranhado.
Tomasse posse da minha fisiologia a tua lembrança.
Desejar-te e não me sentir como se tivesse o teu espírito profanado;
dançar-mos juntos o absoluto de uma erótica dança.

Amo-te porque te pus num pedestal.
Prostro-me a adorar-te como se adora um deus.
Não que isso por si só seja um grande mal…
Mas meu tesão não o provoca os belos seios que são os teus!

Minha alma fornica contigo na efemeridade das poesias.
Etéreos prazeres que muito inquietam e pouco consolam.
Mas são outros os desejos que me tomam de assalto os dias…
outros os corpos que em promiscuidades o meu imolam


leal maria

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Unam-se as mãos que o tempo separou à nascença

Quem dera a noite mais escura,
em que a meio acordasse;
agarrasse a tua mão e sentisse a ternura,
sem que nada mais importasse.

Quem dera não haver um amanhã,
se tu aqui estivesses.
Para que o tempo não te amputasse de mim demasiado.
Teria o espaço entre nós
a arquitectura que quisesses…
Obliquo seria o mundo perante os nossos corpos lado a lado.

Nos pontos de intersecção entre ti e os meus sonhos,
haveria paralelismos a pender para o infinito.
E aqueles pequenos nadas,
de que se fazem os rostos risonhos;
porque é essa eternidade em que eu acredito.

Quem dera a suavidade do teu seio
e o calor do teu regaço.
Afastar-te as pernas e encaixar a minha virilidade no seu meio,
amortalhar toda a tua inquietude no meu abraço…

Quem dera ouvir-te sussurrantes gemidos,
no indecifrável linguajar
que falam os sentidos dos corpos quando gritam.
Fazer em teu favor a penhora de todos os paraísos prometidos
e emprenhar-te de todos aqueles deuses em que tantos acreditam

Quem dera eu alternar em ti a violência e a suavidade,
nos interstícios dos meus ímpetos de macho.
Profanar esse harmonioso desenho da tua mocidade
e encontrar sempre renovadas as quimeras que nele acho.

Quem dera ser-mos o granito que alicerça um alto monte,
para que resistíssemos à erosão da passagem dos dias.
Ou frescas águas a brotar de uma fonte,
que de novo alento saciaria os viajantes para as suas travessias.

Unidos assim, seriamos mais do quanto somos?
Ou multiplicados na subtracção das distâncias;
seria-mos, no fundo, os mesmos que sempre fomos:
insaciados nos sentidos e na alma todas as ânsias !?


leal maria

terça-feira, 8 de setembro de 2009

golpe de mão

golpe de mão

as tuas mãos
assim, firmemente cerradas
hoje, como tantas outrora, ansiosas
têm nelas a germinar
os mesmos gritos que profanaram virgens madrugadas
na taliónica lei do dente por dente e olho por olho tão ciosas.
 
houve um tempo 
em que só caricias as ocupavam
longínqua memória
quando as manhãs te despertavam
ainda folha em branco,
e a possibilidade de uma outra estória.
 
mas se faz tão tarde...
tão tarde e tu sabe-lo bem
em teu peito 
tudo sucumbiu ao ódio que nele arde
és tu e mais ninguém

acerca das virtudes da castrense camaradagem
tantas foram as dissertações que ouviste
vã sapiência
que não evitou que viesses a ocupar na vida a parte malsã da margem
aí, bem firme e de pé, ignoras que já caíste
 
tombaste para o lado onde maior é a solidão
tão inócuos são os abraços a celebrar vitória na batalha.
à feérica luz do regozijo predomina o cheiro da podridão
e é mais golpe menos golpe que na tua alma se talha
 
hoje, como outrora outros igual a ti, semeias os mesmos medos
fertilizando de sangue campos de morte
embrenhando-te no mais terrível dos degredos:
a fraqueza de fazer prevalecer as más razões do mais forte.
 
enviaram-te e tu
voluntarioso, sonhaste com a glória
fortaleceste os músculos e apuraste as técnicas no eficiente matar.
reivindicas-te autor de uma parte substancial da história
mas da tua obra, faz-se maior o ensurdecedor som do órfão a chorar
 
tudo tem um término, porque cansa tudo o que tende a eternizar-se
voltarás e homenagear-te-ão
dizendo que continuas a ser parte importante da engrenagem de um projecto ainda a realizar-se
uma medalha e um aperto de mão
e no alto pedestal do seu orgulho, deixarão ainda, a tua pessoa manifestar-se
 
depois, remeter-te-ão ao subtil silêncio do dever cumprido
paulatinamente, serás esquecido por haver outros em teu lugar
mais frescos, sem que nada ainda os haja comprometido
o choque da perda de inocência, não os fará buscar justificações para o indiscriminado matar
 
ouvirás ministrarem-lhes as mesmas ideologias tealogais
com que te conquistaram a alma para do teu corpo usufruírem
e quando por fim os vires embarcar
heróicos, num triste cais
anteverás o morrer de sonhos quando muitos por terra caírem
 
dirás, para teu próprio consolo, que não tiveste alternativa
perante o chamamento do dever, não vacilaste
pelo teu esforço é que a razão dos teus se mantém viva
e isso, por si só, justifica todos os que mataste
 
em tua honra erguerás triunfante uma taça de vinho
atrás dessa, outra virá, antecedendo muitas mais que virão
olharás em redor eoutros como tu fazer-te-ão sentir ainda mais sozinho
e passarás a fruir os dias numa letárgica subtracção
 
quando por fim, o tempo te subtrair o último dia
encontrar-te-á sem honra nem glória, na imunda sarjeta de uma qualquer cidade
incomodo cadáver que não merecerá uma elegia
apodrecerá com a tua carne tudo aquilo que agora é em ti vontade
 
mas é-te o futuro ainda incógnito
aí de tocaia, alimentas-te na raiva que te mantém alerta
embrutecida besta que o inimigo espera indómito
da dor semeador, em mais um dia que desperta
 
leal maria

Na foto, escultura (relevo) de Sabin Howard

domingo, 6 de setembro de 2009

o sonho na sua simplicidade

era-me simples o sonho.
como simples era eu o sonhar.
simples também era o seu modo de me habitar:
um imenso mar…
os rios dos desejos vinham-me desaguar.

e havia-me portos e havia-me gente.
uns me chegavam e outros de mim partiam.
tantas foram as vezes em que fui a canção dolente;
elegia de todos aqueles amores
que pela distância em mim se desfaziam.

quantos barcos me aportaram
trazendo-me os cheiros de outros lugares que antevia!?
quantos sentidos, no que fui, se acharam
para que eu os desenhasse em rimas de poesia!?

mas são silêncios que agora me ocupam os espaços…
a ritmada ondulação das palavras já não me lava as mágoas.
desvanecem-se em todas as praias a marca dos meus passos,.
já não ouço segredos no murmurar das águas.

vou perdendo o sul em demanda do norte
argonauta navegando à sorte
sem que a linha da costa veja
derivo para o outro lado de lá, onde o acaso me deseja

era-me simples o sonho…
muito mais simples era toda a dor que me trazia:
coração num anseio medonho
navegar tumultuoso sobre marés de poesia

naufrago neste deserto que sou
nada mais germinará neste exílio que não escolhi
fui o semeador que semeou
toda esta infertilidade de afectos onde agora me perdi


leal maria