domingo, 25 de outubro de 2009

assassino de deuses me confesso

putrefactas,
vi as palavras dos profetas jazidas pelo chão...
obscuras actas,
da divina escuridão.

adivinhei-lhes todos os grilhões com que amordaçaram ideias.
ouvi-lhes todos os gritos dos que torturaram em nome da fé.
senti o cheiro a gordura
dos cadáveres que alimentaram as suas candeias;
soube-lhes todas as artimanhas com que derrubaram o Homem em pé.

para quê a suas promessas de eternidade?
que felicidade encerra uma perpétua submissão?
se a isso chamam a comunhão com a divindade;
com orgulho me declaro mortal,
que minha mãe é a terra e meu ventre foi o seu chão.

os deuses que em mim houve, morreram...
definharam consoante me ia clareando o dia.
obtusa negação das razões pelas quais em mim nasceram;
esconjurei-os pela liberdade que em mim nascia.

apátrida de todo o prometido céu,
aliei-me à pureza instintiva do demónio que em mim existe.
com orgulho me assumo réu;
por obstinada recusa em lhes talhar a fisionomia furibunda e triste.

afastei o cálice que me estenderam…
meu sangue e lágrimas não dará ao seu nefasto conteúdo o sabor.
serei aquele que eles para sempre perderam;
dual, alternado entre o ódio e o amor.

nego proselitismo ao seus ministérios.
anárquico, sempre, perante os divinos critérios!

morreram os deuses que me habitaram.
há muito os sepultei.
ao olhar a obra que criaram,
nenhum remorso me subsiste…
com alegria em mim os matei!






leal maria


domingo, 18 de outubro de 2009

sobrevive a esperança ao bucólico desencanto

deu a alma toda dispondo o corpo completo
à gula de quem tomou como traje a pele do predador
submissa, aguardou que algum afecto
fosse o desejado bálsamo para a sua dor

mas ausências amputaram-lhe sonhos
tão grávida de segredos
dentro de si os trouxe como se fora filhos
havia-os gerado nos esforços medonhos
ao desbravar novos trilhos

mas ali,
suave como sempre o fora
decantou com o olhar
tudo o que a flor tinha como essência da primeira hora
e desejou-a um mundo perfeito
forma do grito trazido amordaçado no peito
que crescesse junto ao suave canto
que a trazia no espanto
das coisas a crescer anárquicas e sem espartilhos.

pétala a pétala ia-se descobrindo
moldando corpo e alma ao desejo
como a primeira nota da melodia de um deus rindo
ansioso lábio à espera do beijo

há muito fertilizava-a o pólen das coisas inquietas
às memórias dos tempos que foram duros
sobreporia a luz das manhãs despertas
libertar-se-ia das sombras existentes entre muros

em comunhão com o destino da flor
perenes
somente ser-lhe-iam as boas recordações
ainda que efémeras as glórias do amor
numa ideia de eternidade germinar-lhe-iam as emoções



leal maria

marinheiros deste barco

tu
o outro de mim que lá vens
sossega o passo e adia o destino que levas
senta-te aqui e mostra-me o que dentro de ti conténs
a cada descanso que te permites
é mais um lugar onde a luz dissipa as trevas

sei que contigo não trazes nenhuma verdade
por isso reclamo a tua companhia
basta-me saber que do futuro sentes saudade
e ao passado olha-o como se fora um verso mais da universal poesia

deixa-te aqui estar mais um bocadinho
falemos dos amores que perdemos mas também do que podemos vir a encontrar
que quando definitivamente te fores
não irás sozinho
ver-me-ás ao teu lado caminhar

afinal
desde sempre os nossos caminhos seguem paralelos
e ainda que muitas das vezes divirja-mos sobre perspectiva com que um problema se deve abordar
são sempre os nossos diálogos tão belos
que inexoravelmente é a um mar de novas perguntas onde acabamos por desaguar

é bom ser este rio sem um peixe costumeiro
sinuoso mas ainda assim inteiro
onde o navegar não se espartilha numa ciência exacta
e nenhuma barragem nos mata
porque nesta nossa flexibilidade
encontramos sempre uma outra possibilidade
recanto onde acentuamos a erosão
e nos permite passarmos adiante
perene tentativa de domar o destino na mão
contribuindo um pouco mais para o ancestral sonho do infante

levantemo-nos então
olhemos o caminho em frente com a original emoção
como se de agora em diante fosse o primeiro dos dias
seja-mos marinheiros sequiosos de matinais maresias
agarremos firmes os cabos e a esperança
ancorados somente na determinação
que o sonho nunca se alcança
se ganharem raízes os pés quando os pousamos no chão

tu
o outro que eu sou
aquele que comigo o sonho buscou
vem daí e chama também os muitos outros que somos
saiba-mos realizar alguns dos sonhos que sonharam aqueles que fomos
e nesta promíscua multiplicidade
saibamos antever somente o ténue vislumbre da absoluta verdade

vai ser bom chegar ao fim e ainda tanto por realizar
saber que fica ainda tanto por navegar


leal maria

domingo, 11 de outubro de 2009

migrações




demoras-te por aqui
e eu já me habituei à tua companhia.
lentamente,
vais tomando posse do lugar que para ti reservei.

ainda que continues a contaminar-me a poesia,
sou já imune à memória daquele dia,
em que, invocando-te pelo nome, acordei.

deixaste de me ocupar todos os espaços…
arrumei-te a um canto de mim,
algures entre o desespero e a resignação.
sinto na alma o suave roçagar dos teus passos;
mas já não é isso suficiente para me desassossegar o coração.

passeio agora o tempo como se estivesse a flutuar…
há muito que de ti mais não espero do que a parte que comigo ficou.
e é bom o desprendimento nesta maneira de amar:
não esperar retorno do que de livre vontade se amou.

somam-se novos dias aos velhos dias;
e velhos sonhos como novos se vão em mim renovando.
esbatem-se os significados cifrados daquilo que me dizias;
subsiste uma outra perspectiva do que em ti andava buscando.

velhos desejos são sobrepostos sedimentos munindo-me de uma dura couraça.
nada do que neles almejei me sobrevive agora.
retorno à antiga memória que, violentamente, de novo me amordaça…
censura-se-me a demora.

o caminho, mal ou bem, fazer-se-á !
e ainda que destino nenhum eu alcance;
nada foi desperdício, nem a esperança vã;
novas inquietações impelem-me a que avance.

liberto do que fui,
libertar-me-ei do que sou e serei livre para o que está para vir…
às cegas, vou tacteando as possibilidades!
recuar é apenas uma outra táctica para continuar a ir,
contornando o obstáculo das saudades.

demora-te em mim o tempo que quiseres!
afinal, és parte substancial das minhas mais ternas memórias.
mas quando em definitivo te fores,
faz o mais silêncio que puderes:
para que não te veja partir e a tristeza não me resgate de outras histórias .




leal maria

domingo, 4 de outubro de 2009

Vou, não sei para onde, mas vou

vendo bem
nem sei à quanto tempo
desertei do ventre de minha mãe
de lá para cá
foram tantos os rostos que usei
já não lhes sei a idade
fui sempre mais alguém
em mim mora permanente uma saudade de sentir saudade

em rosto nenhum me reconheço
talhou-os o cinzel das aleatórias circunstâncias
nada têm daquele que usei no começo
esse
perdi-o nos azimutes das minhas transumâncias

àqueles que fui e àquele que agora sou
pouco importa o tempo em grafia no bilhete de identidade
mantém-se a procura e nada ainda se achou
e bem pode ser isso
um dos traços fisionómicos da eternidade

a minha idade é os meus sonhos
e estes não têm forma
não há cansaços que me embaracem em sua demanda
em cada alma que a dor da minha como sua toma
dou testemunho da recusa em aceitar que o tempo manda

nos disseram surgidos de nascimento
e que assim nasce todo e qualquer ser
mas o mesmo é dizer que o sentimento
existe porque houve um querer

antes da haver o querer teve que haver a vontade
antes de haver a vontade teve que haver a sua ausência
para haver a ausência teve que a anteceder uma ansiedade…
é uma espiral a forma da nossa essência

exilado no meu existir
vou ansioso e sempre com a mesma resolução
de encontro ao que está para vir
e no punho fechado
aprisiono a caixa de Pandora na mão

há segredos que revelei
há manifestos que obriguei ao silêncio dos segredos
desbravei caminhos e a lado nenhum cheguei
mas nas suas sombras desbaratei o meu pecúlio de medos

para onde vou não o sei
tampouco me servem de guia aqueles que me precedem
olho para trás
nenhum trilho vislumbro dos que caminhei
e não me reconheço naqueles que me seguem

sou ubíquo nos lugares onde ainda não logrei chegar
desde sempre os habitou o meu desejo
por isso persisto em caminhar
que algures
ainda virgem
há um lábio à espera do meu beijo


leal maria