segunda-feira, 26 de junho de 2023

Génesis

 GÉNESIS


tão somente uma ínfima parte 

do que  dizia sentir;

com talvez aí metade da intensidade 

que declarava empenhar em tal ofício.

na verdade,

nada o motivava a mentir:

não fora o dizer-se de tudo amante,

seu único vício.


poeta por necessidade e tacanhez,

titubeava perante a literalidade das flores.

incapaz de lhes descobrir na primaveril lânguidez,

sensíveis metáforas;

possível bálsamo para as suas dores.


mas o vínculo à concreta realidade;

a incapacidade

de passar adiante do imediatamente apreendido;

obrigaram-no 

à domesticação das palavras e da sua sonoridade;

delas se assenhoreara,

ainda que por elas vencido.


embora coisa não houvesse 

que mais o tentasse,

do que as vergar à vontade que no caos se ajeita;

deixara-se aprisionar na musicalidade da rima.


mas por mais que o  quisesse,

e a tal se esforçasse;

baralhando as da esquerda para a direita

e as de baixo, oblíquamente para cima,

descobria-se sempre por ela escravizado;

imbuído num contraditório voluntarismo,

como se sofresse a malsã obsessão

daquele que por muito apaixonado,

percorre ruas num impenetrável mutismo

e as toma somente habitadas 

pelas frias pedras a calcetarem o chão.


e chão lhe era, esse emaranhado de palavras,

construindo a frase viciosa.

melodramático, nele se sublimava  prazeroso.

caminhava-o prosélito de uma teologia melodiosa;

mas com rosto sofrido como se o cingisse  cilício,

que rasga a carne até ao ipifânio gozo.


assim paramentado,

não mais lhe restava do que o sarcedócio no luso idioma.

os sentidos obrigados 

à liturgia a que se tinha agrilhoado.

desconsolado saciar de fome.

maná ofertado por um deus sem nome.

pão seco em que nada mais há que se coma.


mas poeta se dizia e sentia que o era;

ainda que resignado a essa sua limitação.

enfim,

não seria vinculado ao seu nome,

que a literatura entraria numa nova era;

e na sua falta de fé apenas se almejava,

subtraído na palavra, à inevitável podridão.


e porque não!? 

o estirparmo-nos das pútridas entranhas,

pela grafia dos sentidos

arrancados às paixões da carne;

é recurso tão lícito 

como outras quaisquer artimanhas,

nessa permanente luta 

com a divindade que de nós escarne. 


mas sabia-a invejosa (a divindade),

nesse seu de nós escarnecer.

obtuso espírito, 

que só no mármore expressa a sua eternidade

e furibundas feições 

nela foram cinzeladas para nos estarrecer.


o medo... ah o medo! sempre o medo...

esse grande disciplinador que a todos tolhe.

embrulham-no no enganador ânimo 

do neófito introduzido ao segredo;

mas a verdade 

é não haver deus algum que de nós cuide e olhe. 


sabe-nos, o poeta pela rima manietado, sós!

sujeitados à bruta animalidade da nossa natureza.

condição que a todos nos tem atados em górdios nós

e o propalado livre arbítrio,

é doce ilusão atenuando a incerteza.  


mas à frustração pela consciência dos seus limites;

preferiu a semântica da falsa fragilidade,

nas sombras projectadas na caverna de Platão


que deformadas por interpostas estalactites,

propõe alucinadas versões da concreta realidade.

fértil campo onde mais universos se semearão.


treme num desespero amansado, 

a mão do rimador.

ávida das ténues e raras fontes de luminescência,

que se desvanecem 

manejadas pela garatujada caligrafia.


e fica no peito amordaçada, a dor;

sentida ou a tal forçada, pela lírica ciência,

que são os ínvios caminhos da poesia.


resoluto, 

antecedeu o verbo com consoantes e vogais; 

sem coragem para contrariar,

essa natural hierarquia da precedência.


rastejante anfíbio dos pantanosos lamaçais,

ousou confrontar o rosto que de cima o estava a mirar

maravilhado de o ver desejar a árvore sem a sua anuência


não sendo espantosas,

viu que no entanto, eram coisas boas

e alumiavam, ainda que poucochinho. 


leal maria


sábado, 21 de janeiro de 2023

nessas tuas delicadas mãos com cheiro de aconchego

surpreendi-te perscrutar o horizonte
desenhado num alto, ressequido e poeirento monte
que é por um  mosteiro em ruínas encimado
digno testemunho da persistência 
ainda que vã toda a resistência 
do Homem pela força da vontade animado

não tão ao longe
movia-se o velho que o habita
um já muito antigo monge
que em incessantes passos não hesita 
na sua periclitante e lenta caminhada
e cuja fé perdida não o dotou ainda da necessária coragem 
para desistir d'uma vida asceta e abnegada 

mas eu, sedento de divino
pretendi do teu olhar, a boleia 
porque aspiro o límpido azul de um céu de verão 
à hora em que toca o sino 
que nos anuncia o meio-dia e meia

e senti-o tão puro
como o branco dessas paredes caiadas
com que na pobreza se repudia a miséria 
meu feliz esconjuro 
de quando vagueava em incorrectas coordenadas
minha sentida e genuína felicidade como a do operário no dia em que recebe a sua míngua féria

mas do teu, meu olhar se apeou
e na curvatura do teu seio pousou
admirando-o apontar o céu 
obra e arte de um qualquer sutiã miraculoso
que assim o expõe ao olhar de um qualquer lascívio guloso 
e te mantém na tosca e brejeira adjectivação de pitéu

é espírito quando sonha, o teu olhar 
e se põe adiante
imbuíndo-me de uma subtíl sensibilidade  que não me atesoa
vê-lo assim lacrimejante 
é um réquiem que em mim se entoa

porque me devolve à consciência o efémero das coisas
do quão fugaz é a agradável sensação das carícias que sobre mim poisas 
e trazes armazenadas em quantidade
nessas tuas delicadas mãos com cheiro de aconchego
que à força de boa índole e íntrinseca bondade
me ofertas em igual intensidade 
nas minhas partidas e sempre que chego

carícias que não mereço
sempre fui mais eficaz amante nos corpos que menos amei
por os manejar sem grande apreço 
numa livre animalidade que em mim existe e só nesse contexto encontrei

mereces bem mais do que a declamação do poema pedante e grandiloquente
vazio de substância sem o ornamento de uma emotiva melodia 
porque miscível se torna o frio diante do teu bafo quente
e a escuridão da noite deixa antecipar a regular sucessão à luz do dia 

abraças-me
sinto-o mais maternal do que amante
justificando a migração para o conforto do teu regaço
perspectiva que me permite ir mais adiante
do teu olhar que no decrépito mosteiro se quedou com embaraço
surpreendido que foi revelar-se susceptível a limites
sem noção de que na expressão do teu amor
há uma originalidade que não permite que a nenhum gesto imites 
e profano seja tudo aquilo que provoca dor

assim me deixo estar
na narcótica letargia  em que aceito
a condição de simples pó sideral 
acomodado na  irresponsável  assunção de que em cada corpo com quem me deito
busco conhecer do universo o seu propósito fundamental 

não estás nem aí para esse tipo de minudência
afecto é algo a que a ninguém enjeitas
um radical altruísmo obriga-te à anuência 
em aceitar a integral natureza dos amantes com quem te deitas 

é por isso que somente no teu olhar
encontro a possibilidade de ir ao encontro do divino
porque impuro, recuso profanar
o límpido azul em que o meio dia e meia se anuncia no toque do sino 

e nem a torre da igreja nova ousa caminhos nesse céu onde o teu olhar se move
enquanto me afagas o cabelo
nem  deus algum há que no teste da honestidade te reprove
quando terna me mentes ser ele ainda sedoso e belo

vem então daí comigo
trincaremos ambos todas as maçãs
dos jardins abobadados com céus como este que nem uma só nuvem o macula 
os deuses que nos querem impingir contaminar-nos-iam os ares puros das manhãs
e holocausto seríamos
para satisfação da insaciável voracidade desses deuses que sofrem na sua imortalidade o pecado da gula. 

leal maria

domingo, 4 de dezembro de 2022

sangue

 encarnado

a fugir à côr do vinho carrascão

assim é o sangue

na guerra  vertido em profusão  


concreto, literal e expremido à dor

pretendem-no sagrado

necessário unguento redentor

justificando cada corpo tombado


e ainda que aos cadáveres agora dele esvaídos

nenhuma metáfora lhes valha

não há demanda ideológica sem o seu quinhão de caídos

recorrente mão d'obra à disposição da mais reles escumalha


impetuosos e galantes generais 

aspirando à inscrição nos livros da história

alicerçada a ambição na podridão dos demais

têm-se como merecedores de serem alçados à glória 

 

e tu, satisfaz-lhes as vís vontades

alimentas-te nas suas enviesadas ideologias 

tolo prosélito 

a seu mando assediando cidades

semeando a triste morte onde houvera de crescer vida e alegrias 


nas suas bem apetrechadas casernas

na elegância cerimonial dos seus palácios sumptuosos 

congeminam embrutecer-te Homem das cavernas

requerendo de carne despida os teus ossos


são eles a essencial estrutura

dos projectos desses contra a humanidade mancomunados

horrenda arquitetura

de uma sociedade onde uns dominam e outros são dominados 


e tu, satisfaz-lhes as vís vontades

alimentas-te nas suas enviesadas ideologias

tolo prosélito 

a seu mando assediando cidades

semeando a triste morte onde houvera de crescer vida e alegrias



leal maria

terça-feira, 21 de junho de 2022

do pai, para beatriz:

 

pequena porção de vida

o ainda disforme como epítome da humanidade

descoordenada coreografia de recém-nascida

génese em mim

de incondicional amor

por tão poderosa fragilidade


foram-se as trancinhas no cabelo

eterna menina à minha revelia metamorfoseada em mulher

perdurarás paradigma do belo

minha vontade somar-se-á ao que a tua quiser


leal maria

domingo, 14 de abril de 2013

lavrador



confesso
nada há de espesso
nas miríades de palavras lavradas em vão
reconheço existir razão maior
(erra quem o considerar um pormenor)
no cavar a terra e emprenhar o chão

nos ofícios há o concreto
e a óbvia mais-valia
nas palavras
somente o pretensamente secreto
quando a inconfessável vaidade
ornamenta a prosa de poesia

mesmo um grande amor
quando nas palavras plasmado
não passa de um metamorfosear da paixão em dor
lamuriante e lamentável ritual de apaixonado

nocivo alimento
da eternização deste sentido em meu peito
arquitectura fundeada em oníricos ideais
sentimento adulterado pelo que tem de tão imperfeito
desejar com esperança o que satisfeito será jamais

sim, confesso
sou legitimo alvo desse dedo acusador em riste
somente peço
que o orgulho complemente a minha fisionomia algo triste

orgulho sim
é licito o meu crime porque o cometi convicto
sem outro intuito de que me declarar no fim
ser impossível ter-me mantido invicto

vencido já o era antes de o ser
quando couraçado no querer tanto querer
tão voluntariosamente parti para esta “guerra”
tão mais simples seria ao invés de palavras, lavrar a terra

leal maria

domingo, 21 de outubro de 2012

o corpo o suor e o sal (a dança)


puro dialecto da arte

exprimido

no vocabulário dos corpos entre o  desespero e a esperança

o todo e a parte

no parte e reparte

da fluída brusquidão dos movimentos

grandiosos como o sonho do Homem vir habitar Marte

ou estabilizar as voláteis fronteiras dos anárquicos sentimentos

o ir e o vir

em elipses tendentes à espiral

o corpo o suor e o sal

na pornográfica coreografia do sentir

ao ritmo da conquista do vazio

subtis nuances oscilando o quente e o frio

âmago do aparente sem nexo

promiscuidades consentidas

amor e ódio em prelúdios de sexo

rituais para os quais se faz pender todas as vidas

choro e riso na mesma fisionomia

grafia feita com a animalidade da humana anatomia

palco metafórico de tudo

megalomania de ser-se denominador comum do universo

sensuais caracteres de um idioma mudo

derrubando  fronteiras entre a prosa e o verso

orgíacos labirintos

explorado nos gestos cifrados do tronco pernas e braços

rostos rasgados por esgares de pretensiosos segredos

etérea e insuspeita leveza em firmes passos

esconjuro de todos os medos

orbita alucinada dos desejos

falso narcótico das mais intensas paixões

mãos que raptam aos lábios os beijos

e cobrem a nua carne de puras emoções

dialéctica do efémero com a eternidade

da vida com a morte

alicerce oscilante da saudade

de quem faz dos quatro pontos cardiais o seu Norte

 

 

leal maria

 

domingo, 14 de outubro de 2012

oculto


trôpegos lirismos
surgindo do nada
sem que os convocasse a vontade
sub-reptícios sentimentos
disfarçados de torpes lamentos
prometendo uma sempre adiada
maior-idade

mas efémeros
esvaem-se por entre os interstícios do querer
onde livremente fluem e adiante passam
falsa resignação para com o perder
como se urgisse um outro tempo
e novas as velhas quimeras que  se abraçam

substância dos dias que se foram
e se vai intuindo a mortalidade dos sonhos
persistindo a adivinhada imensidão do porvir
sentidos que se penhoram
em devaneios medonhos
com inabalável fé em promessas que tardam em se cumprir

atrapalha a linear memória das formas dos corpos que se amou
subtraídos às subtilezas dos cheiros da vida real
esconsas nuances do que obstinadamente se buscou
descobrir somente a memória alicerçar o nosso ideal  

entre tantos escombros  perdido
faltam em tamanha topografia do caos as referências
que orientassem num norte intuído
alma gerada por ocultas ciências

líricas tristezas
verossímeis  se as manifesto  assim de semblante tão circunspecto
mas a alegria que genuinamente sinto
contamina todas as minhas certezas
impregna o meu afecto
e coloridas são as as razões que na tela negra pinto


leal maria 

domingo, 30 de setembro de 2012

ao cuidado de V. Exas. deste Vosso...




porque não uma festa assim?
se dia após dia,
em circunspectos discursos, nos declaram guerra.
dizerem-nos: "não avançaremos mais… chegamos ao fim",
basta para que lhes provenha-mos leito em macia terra.

 
com a força do nosso braço,
alavancados em vontade de aço,
cavemo-las então companheiros, as sepulturas;
com a madeira do caixão os venha-mos a vestir.
há muito passou o tempo das ternuras.
exige-se mais do que o resistir.


leal maria 

da saudade


demasiada a intermitência das alegrias
tudo o mais  tristeza da ausência
da saudade a dor
se  mal recordo palavra das que me dizias
há a memória de cada suave acidente do teu rosto ao pormenor

dias que para trás ficaram
e ancorados os gestos coreografados pelo teu embaraço
gestos desenhando o limite onde meus sonhos se aprisionaram
o que mais de ti tive aproximado a um abraço

e insisto nestas recordações
como se a consequência de me abster desse exercício  
me privasse à tempestade das fortes emoções
d´uma alma em bulício

comigo as trago
sem a mínima convicção de necessitar a sua companhia
somente não consigo delas me livrar
capricho de não me abster do tanto que queria 
absurda insistência em continuar amar 

contradições com que sigo adiante
não vislumbrando mais que o imediato instante
e tudo se me depara já irreversível

obstinada é a vontade
quando impelida a saudade
ainda que de antemão se saiba a natureza do derradeiro nível



leal maria

sábado, 22 de setembro de 2012

cósmica imensidão de ínfima parte de mim


etérea natureza
ténue  luz  na memória coalhada
dolorosa certeza:
mudo é o grito da vontade frustrada
e covardia
não ter cumprido promessa que então  fazia
ao lábio que sorria
não ter permitido o desejo
atenuasse o cio pelo beijo

etérea natureza do esgrimir palavras
tentando a custo encontrar-lhes o ritmo certo
embrenhar-me nas mais complexas lavras
p´ra que na alma não me magoe mais este aperto

alma minha de consolo desejosa
nada profetizava  este vazio que em ti sobrevive
nada há que fazer se possa
alma de um quase nada
de ser quase, moribunda vive

e como decidir qual o lado
em que a luta me merece o trabalho mercenário
se tudo foi às sortes jogado
e mesmo assim não arrisquei o necessário

desta dor sei em detalhe a fisionomia
límpida imagem das dores que voluntariamente procuro
masoquismo metamorfoseado em poesia
dando corpo a afectos que na realidade descuro

obscura amálgama de emoções
tortuoso caminho feito a sorrir e verdadeiramente feliz
bater dessincronizado do meu com outros corações
opressiva liberdade tornando-me apátrida…
sem que me prenda nenhuma raiz

mas há um porto em que sonho aportar…
motiva esta deriva em que navego
a barbara circunstância de cada vez mais me afastar
testemunha ser o desenho do teu rosto o azimute onde no sonho me aconchego   




leal maria