sábado, 21 de janeiro de 2023

nessas tuas delicadas mãos com cheiro de aconchego

surpreendi-te perscrutar o horizonte
desenhado num alto, ressequido e poeirento monte
que é por um  mosteiro em ruínas encimado
digno testemunho da persistência 
ainda que vã toda a resistência 
do Homem pela força da vontade animado

não tão ao longe
movia-se o velho que o habita
um já muito antigo monge
que em incessantes passos não hesita 
na sua periclitante e lenta caminhada
e cuja fé perdida não o dotou ainda da necessária coragem 
para desistir d'uma vida asceta e abnegada 

mas eu, sedento de divino
pretendi do teu olhar, a boleia 
porque aspiro o límpido azul de um céu de verão 
à hora em que toca o sino 
que nos anuncia o meio-dia e meia

e senti-o tão puro
como o branco dessas paredes caiadas
com que na pobreza se repudia a miséria 
meu feliz esconjuro 
de quando vagueava em incorrectas coordenadas
minha sentida e genuína felicidade como a do operário no dia em que recebe a sua míngua féria

mas do teu, meu olhar se apeou
e na curvatura do teu seio pousou
admirando-o apontar o céu 
obra e arte de um qualquer sutiã miraculoso
que assim o expõe ao olhar de um qualquer lascívio guloso 
e te mantém na tosca e brejeira adjectivação de pitéu

é espírito quando sonha, o teu olhar 
e se põe adiante
imbuíndo-me de uma subtíl sensibilidade  que não me atesoa
vê-lo assim lacrimejante 
é um réquiem que em mim se entoa

porque me devolve à consciência o efémero das coisas
do quão fugaz é a agradável sensação das carícias que sobre mim poisas 
e trazes armazenadas em quantidade
nessas tuas delicadas mãos com cheiro de aconchego
que à força de boa índole e íntrinseca bondade
me ofertas em igual intensidade 
nas minhas partidas e sempre que chego

carícias que não mereço
sempre fui mais eficaz amante nos corpos que menos amei
por os manejar sem grande apreço 
numa livre animalidade que em mim existe e só nesse contexto encontrei

mereces bem mais do que a declamação do poema pedante e grandiloquente
vazio de substância sem o ornamento de uma emotiva melodia 
porque miscível se torna o frio diante do teu bafo quente
e a escuridão da noite deixa antecipar a regular sucessão à luz do dia 

abraças-me
sinto-o mais maternal do que amante
justificando a migração para o conforto do teu regaço
perspectiva que me permite ir mais adiante
do teu olhar que no decrépito mosteiro se quedou com embaraço
surpreendido que foi revelar-se susceptível a limites
sem noção de que na expressão do teu amor
há uma originalidade que não permite que a nenhum gesto imites 
e profano seja tudo aquilo que provoca dor

assim me deixo estar
na narcótica letargia  em que aceito
a condição de simples pó sideral 
acomodado na  irresponsável  assunção de que em cada corpo com quem me deito
busco conhecer do universo o seu propósito fundamental 

não estás nem aí para esse tipo de minudência
afecto é algo a que a ninguém enjeitas
um radical altruísmo obriga-te à anuência 
em aceitar a integral natureza dos amantes com quem te deitas 

é por isso que somente no teu olhar
encontro a possibilidade de ir ao encontro do divino
porque impuro, recuso profanar
o límpido azul em que o meio dia e meia se anuncia no toque do sino 

e nem a torre da igreja nova ousa caminhos nesse céu onde o teu olhar se move
enquanto me afagas o cabelo
nem  deus algum há que no teste da honestidade te reprove
quando terna me mentes ser ele ainda sedoso e belo

vem então daí comigo
trincaremos ambos todas as maçãs
dos jardins abobadados com céus como este que nem uma só nuvem o macula 
os deuses que nos querem impingir contaminar-nos-iam os ares puros das manhãs
e holocausto seríamos
para satisfação da insaciável voracidade desses deuses que sofrem na sua imortalidade o pecado da gula. 

leal maria