segunda-feira, 30 de agosto de 2010



 não há glória maior do que esta:
 ser-se filho do acaso.
 obstinado espermatozóide
 ejaculado durante uma divina sesta;
 fêmea emprenhada,
 para que se preenchesse o vazio do caminho por onde agora passo.



 leal maria

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

crónica para amantes alucinados

a bem dizer, esse olhar nem sei se o conheço…
apenas de relance o vi.
e a imagem que de mim reconheço,
no reflexo que me devolveu não a reconheci.

as viagens que lá encontrei, estavam ainda por realizar.
aos sonhos,
cobria-os uma suave neblina.
complexo mundo,
não se deixando facilmente rebelar…
encantatória (quem sabe com que enganos) frescura vespertina.

para tanto me bastou,
as subtis e imprecisas insinuações
como universais verdades vertidas por sábios.
definir o que me encantou?
não sei!
talvez a luz nele adivinhada de um sorriso a desenhar-se em belos lábios.

os lábios…
a esses, sei-lhes o harmonioso arco de que se faz a sua perfeição.
complemento do uma beleza ainda mais basta.
não, senhores não falo de tesão:
mas sublimação maior; que tanto nos atrai como nos afasta.

não… não lhe chamemos amor:
Já um vulgaríssimo lugar comum.
não serve para dar a exacta medida à dor,
que é desejar-nos no reflexo de um olhar e só esse nos servir e mais nenhum.

seja como for, um nome é apenas isso: um nome.
nada me impede deles fazer um uso diferente dos demais
é sentimento que aos poucos em mim se some
um destes dias achar-me-ei só e sem saber o que espero naquele cais.

até lá… dou-me como perdido.


leal maria

liberdade de escolha

caminhai…
segui esse rumo, se assim melhor vos aprouver.
eu, vai não vai,
algum caminho hei-de também escolher.

por enquanto, escolho aqui ficar.
agrada-me este vazio de promessas.
nada esperar:
fruir de vida sem ansiedades ou pressas.

esta é a minha imediata revolução:
ver-vos ir sem que me tente o horizonte que perseguis.
esvaziarei de todo o adeus a minha mão;
e aqui, senhor na minha vontade, serei feliz.

talvez, quem sabe,
ainda venha a escolher um caminho ao vosso oposto.
pode ser que ainda acabe,
por encontrar um outro lugar,onde eterna a liberdade e sempre Agosto.

sim; é isso o que afinal procuro.
não me tentam riquezas ou glória:
conquanto haja a possibilidade de sonhar um futuro,
onde a luz seja perene testemunha da história.

guerreiro…
de uma maneira ou de outra é forçoso ser-se sempre guerreiro.
mesmo em batalhas a sonhar, o sangue colore a morte.
marinheiro...
navegar à bolina, contrariando o vento-norte.

do que encontrei,
nada definitivamente me moldou... nada me serviu.
mas não sou já a mesma matéria.
lodo… talvez o mesmo lodo que originalmente se viu;
só que agora atrás de uma mascara mais séria.

assim tem que ser!
somos sempre mais que a imagem que projectamos:
complexos universos num constante morrer e renascer,
contaminados à priori por aquilo que desejamos.

luta-se…
nunca o soçobro seja perante o medo.
caído em desgraça ou alçado vitorioso,
sejam os temores meu maior segredo.

segredo que de mim mesmo guardarei...
faça minha vontade a escolha.
única lei...
em meu olhar, por ela,
a mesma reverência do devoto que o seu poderoso deus olha.





leal maria

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

crónica da impossibilidade de um possível amor


sabes? dá-me agora para a nostalgia.
sim;
vêm-me à memória aqueles nossos calmos passeios à beira mar.
mãos entrelaçadas; comentava-mos as fúrias que ele escondia…
a imensidão, essa; aprisionava-la no teu olhar.

e no campo;
as correrias que o teu largo e sincero sorriso tornavam instáveis…
como tão nítida, com a memória, agora te vejo.
coisas que me davas e não eram permutáveis.
a ternura do teu abraço lançava às feras o meu desejo.

as noites… lembras-te que as dizia-mos só nossas?
com que ímpetos nos oferecia-mos sem qualquer pudor...
de nada valem as realidades que apresentar-me possas,
se já nada influis neste meu amor.  

não; tu não o sabes e, provavelmente, nem o sonhas,
o quanto toda esta nostalgia te faz presente em mim.
que interessa os contrários argumentos que como obstáculo nesta minha saudade ponhas;
se no mais intimo de nós as coisas raramente têm um fim.

sim, é bom recordar esses momentos muito nossos.
ainda que me digas louco,
arrepio-me até aos ossos;
ao recordar-me que não quantificava-mos o amor em muito ou pouco .

sim, serei louco; alucinado; …
amo-te como nunca a outrem amei!
pouco importa ser nostalgia de momentos que nunca entre nós se tenham passado.
a minha realidade tem como substância o etéreo brilho que no teu olhar vislumbrei.


leal maria

terça-feira, 17 de agosto de 2010

anatomia em sob-luz (inspirado na fotografia de Francesca Woodman)

alma…
obstinadamente a procuro
ao devassar corpos
ao exigir a subserviência do olhar
sim, a alma
esse primordial húmos
que promete resgatar-me à putrefacção
que em desespero tento adiar

e as sombras
decifrando-me a morfologia dos sentidos
numa ideal grafia para imperfeitos dialectos
sustêm as ruínas
albergue dos meus amores perdidos
numa anatomia de sob-luz que desejo perfeita e feita de afectos

subtis desejos
vindimo-os no anárquico turbilhão do que sinto
e com eles profano
o total despojamento de anónimos lugares
ínfimos instantes
em que não sei se falo a verdade ou minto
as memórias como refinados vinhos esquecidos em esconsos lagares

tudo em mim converge numa alucinada espiral
para o limiar de uma porta
onde se realiza uma crucificação pagã
dogma a tinta indelével sobre uma linha direita
onde um semi-deus escreveu numa caligrafia torta
inúteis instruções
para a tentação que tenho em comer a maçã

num abraço frio e virgem
a terra acolhe todos os corpos que amei
assim inertes, têm a dinâmica da vertigem
mas não lhes reconheço no rosto a alma que neles invoquei



leal maria

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

esquizofrenia

houve um tempo em que tive a veleidade de tombar gigantes.
moldar o mundo à conveniência do meu querer.
sim;
um tempo feito pela medida dos meus perfeitos instantes.
e o sonho era o único caminho que me permitia percorrer.

mas o tempo é-me isto mesmo:
albergue dos fantasmas de mim que fui deixando para trás ao longo do caminho.
afoito, desbravei-o a esmo;
e dos muitos que fui, somente sou este que agora aqui vai caminhando sozinho.

mas ainda lhes ouço as vozes.
lamurias que desejava incompreensíveis.
mau grado a etérea natureza dos seus corpos; correm velozes,
apanhando-me neste tempo de naturezas tão susceptíveis.

nos seus antigos dialectos, relembram-me que foi por eles que falei.
fazem-me saber que os anseios sob os quais pereceram eram os meus.
forçam-me a almejar de novo o que então em desespero busquei.
obrigam-me a representar de novo o Homem-Deus.

mas perdi o jeito para brincar a ser um dos senhores do mundo.
os discursos entaramelam-se-me em incompreensíveis retóricas.
esvaio as palavras do seu sentido mais profundo,
no devaneio de travar batalhas de igual importância a outras históricas.

Irra… deixai-me!
Ide;
ide-vos embora.
e despojai-me…
sim; despojai-me daqueles que fui outrora.

estou no antípodas do que é paradigma da intemporalidade,
efémera é-me toda a imortalidade de um momento perfeito a acontecer:
sou a mão calejada de um deus despojado de divindade…
não ouso mais os sonhos que me faziam ansiar cada novo amanhecer.

deixai-me nesta letárgica e doce penumbra,
onde só me rege essa necessidade maior:
não prestar vassalagem a todo o fogo fátuo que me deslumbra;
purgar o essencial ao seu mais ínfimo pormenor.

deixai-me assim; de tudo tão despojado;
recuso o que me dais.
não… não pretendo chegar a nenhum lado;
quero somente a deriva… não aportar em nenhum cais.

se ninguém logrei arregimentar para as minhas causas,
foi porque nelas perdi a fé.
suaves pausas
são aquelas em que não tenho de manter-me firme e de pé.





leal maria