quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

livre consciência

violento não é
o fluir das estrelas no espaço Sideral
nem o adeus que definitivamente se disse
tão pouco
a retórica sem a frase fundamental
ou passar pelo sonho sem que ele nos possuísse

a dor que nos infligem
a mentira com que nos difamaram
as demagogias que nos impingem
o amor que queríamos dar e o rejeitaram

não
nisso nada há de muito violento
é a efémera superficialidade da dor
contratempo de nos contrariarem o intento
o breve esfriar do ardor

nas regras em que nos espartilham
não temos que aceitar a violência que nela pretendem
de violência na escassez do que partilham
somente a haverá
se aceitarmos passivos a justificações que darem-nos entendem

violento é negarmo-nos a tudo
ir contra os nossos mais primários desejos
ouvir a melodia
e a canção manter-se aprisionada no nosso lábio mudo
amar-se um corpo
sem o profanar com violentos beijos

violento é calar a indignação
erguer-se bem alto alicerçado na bajulice
falta de firmeza na defesa da nossa razão
compactuar com a intrujice

não
não é violento os anátemas que nos lançam
há dor maior do que as opressões a que somos sujeitos
poderemos vir a insistir
nos objectivos que por agora não se alcançam
e purgar-nos de todas as angustias que emergem em nossos peitos

a vontade d´outros prevalecendo sobre a nossa
sem que a consciência o justifique
aderir a uma causa
em que não acreditamos e pela qual lutar não se possa
somente para que o que sempre foi fique

isso é violentarmo-nos profundamente
isso sim
sepultar o olhar no chão quando nos olham de frente
esperar no canto da arena que o combate chegue ao fim


violento
é ser-mos pequenos pelo prisma em que nos olhamos
a palavra sair titubeante quando advogamos a nossa causa
deixar-nos escravizar somente pela preservação da paz que amamos
deixar a luta a meio permitindo-nos a uma pausa

o desistir
sujeitarmo-nos à infâmia de nos verem soçobrar
persistir na obstinada crença
de um paraíso que um furibundo deus tarda em cumprir
em nome de uma qualquer  fraternidade abdicar de lutar

aceitemos o desafio das pedras que nos atirarem
não tiremos o olhar do pau que sobre nós se ergue
as pedras serão devolvidas com o dobro da violência com que nos chegarem
ao pau faremos com que à nossa vontade se vergue

honra e força seja a nossa divisa
sem prestar vassalagem a um qualquer deus ou ideologia
somente vinculados à premissa:
violento é não obedecer à consciência que nos guia


leal maria

sábado, 18 de dezembro de 2010

nos dias em que te amava

nos dias em que te amava
eram as coisas tão mutáveis como o são hoje
amiúde
o que tinha como certo mudava
havia também esse algo indefinido
que continuo a tentar alcançar e me foge

naqueles dias
em que era grande o meu amor por ti
de tantas promiscuidades contaminando-me os sentidos
tão grande era o desespero como o que agora senti
ao intuir definitivamente perdidos
os mundos que de te amar construí

sim
nada têm de diferente os dias de agora
por comparação com aqueles em que desesperava por ver-te
o mesmo vazio perante a inexorável multiplicação da hora
a mesma desesperada procura
das palavras com que lograria vencer-te

e não sendo diferentes dos de então
têm a desvantagem
de serem massa pouco moldável à disposição da minha vontade
anarquia migrante
dos meus sentimentos em perpétua viagem
manietados
tendente a regressar sempre a uma pretérita idade

mas há que seguir adiante
na contínua fuga à memória dos dias em que te amava
desejar a indefinida linha lá tão distante
onde não se ouçam os ecos
de quando desesperado por ti chamava

que é a vida senão uma fuga em frente
a inevitável impossibilidade de voltar-mos atrás
resta-me a ilusão
que em mim nenhum amor por ti se sente
e a sempre frustrada tentativa
de nos dias somados encontrar alguma paz


leal maria

domingo, 12 de dezembro de 2010

d´outro tempo que a memória foi buscar

sobretudo
a memória de fragmentos de manhãs
e um corpo fêmea molde do meu desejo
respirar mudo
amiúde violado com palavras vãs
não fosse denunciar-se em mim a urgência do beijo

inapropriado palco
para a representação de uma peça de ingénuo argumento
minha perfeita actuação de um triste entardecer
tosca dramaturgia
fazendo-me dramaturgo do perpétuo lamento
busca desesperada
de um sinal no olhar que me fazia enternecer

há ténues brisas sobre o que resta desses dias
levantam o pó
ao que agora são dolorosas recordações
pondo a descoberto
uma saudade mal diluída em palavras de poesias
remetidas para um baú sobrelotado de emoções

sou também Atlas
carrego sobre as costas um secreto mundo
cheio de nações a que não posso dar nome
sem retirar às palavras o seu significado mais profundo
empenho-me num inócuo chamamento que em ecos se some

sempre amei com o amor impossível da mitologia
fecundo de tanta ilusão
mas daquela luz que no horizonte luzia
não logrei reclamar para mim um quinhão

perdido o alento
para continuar em demanda de quimeras que persegui
resta-me desconstruir as que a resignação ainda não desmoronou
evitarei os caminhos que então segui
extemporânea decisão
que já não permite reencontrar-me com o que verdadeiramente sou


leal maria