domingo, 23 de agosto de 2009

divina fisionomia

de coisa nenhuma eu provenho
substancia-me a eternidade do nada
que é de nada a forma do meu desenho
não sou principio nem fim de estrada

meus caminhos levam a lado nenhum
e é algures em nenhum que meu corpo não existe
não sou muitos nem só um
na minha inexistência não sou alegre nem triste

para que melhor me entendeis
olhai para a mulher Afegã
e por ela conhecereis
minha fisionomia na sua vida tão vã

adivinhai-lhe os silêncios impressos
no rosto sulcado a desespero
torturada pelo medo de não ter as virtudes
pelas quais lhe prometeram o paraíso
mas é aqui, no absoluto nada, que a espero
e para isso nenhuma virtude é preciso

imaginai essa mulher
com o corpo ornamentado de cicatrizes que não mereceu
e a quem fizeram escolher
entre a morte ou o nada ter de seu

o seguidor foi quem lhas fez
para que soubesse o valor da obediência
declarando-lhe ser indigna da perfeição da sua tez
porque assim o determinava divina ciência

adivinhai-lhe um semblante
de quem deixou de acreditar
na possibilidade de haver um outro mundo
de muito mais cores
porque nunca os olhos ousou levantar
para que não lhe sentissem secretos os amores

vede que se levanta para os dias
como quem toma a direcção da sepultura
na sua suja miséria não germinam poesias
e se alguma há, mal lhe sobrevive a ternura

ama os filhos como quem tem fome e come pão
sua mãos
são ferramentas onde não nascerá qualquer carícia
todas as vezes em que é possuída
afaga-a um duro e frio chão
escravizando-a entre os vermes e a alheia malícia

os dias nascem e com eles mais putrefacta fica a sua esperança
e interroga-se sobre a razão do seu viver
se a efémera liberdade que traz na lembrança
só lhe traz o desejo de morrer

a vontade lhe seja feita
que vale muito mais a morte
que essa vida tão cheia
de resignação pelo violento destino que lhe calhou em sorte

olhai-a e sabei o que é o nada
nessa miserável vida vereis aquilo que vos quero mostrar
toda a divindade só tem a finalidade
de na escuridão vos aprisionar

é esse o rosto que me deram
e no qual tantos se prostram em reverência
porque assim o quiseram
homens inflados de iníqua sapiência

neste vazio onde me acho
não me chegam os clamores de quem me chama por um dos muitos nomes
minha má sorte não ter nascido de fêmea e macho
por mim vos emprenharam de bastas fomes

mas que culpas tenho eu
se a minha essência é esse nada que sou
se algo alguém vos prometeu
não podeis dizer que em mim alguma coisa se achou

dai-me a paz da inexistência
estou ébrio de tanto sangue que por mim verteis
furtai-me à audição da vossa eloquência
que não fui eu que vos expulsei desse paraíso que tanto quereis


leal maria

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