domingo, 20 de junho de 2010

do chão se levanta a palavra; numa elegia ao corpo que à terra desce (pela memória de José Saramago)


imune à passagem do tempo,
não ficará sequer o nome que te chamam.
inevitavelmente, sobrevirá , implacável, o esquecimento;
àqueles, que comovidos, invocando-o, te aclamam.

aquele intermitente esquecimento de quem tem de viver o dia a dia,
sem permanentemente pensar
nos que soçobraram perante a inevitável regra da natureza.
relembrar-te-ão, talvez, ao ler uma prosa tua, uma poesia,
mas ao mais das horas,
tributar-lhes-ão os mesmos anseios, tão cheios de incerteza.

mas que isso te serviu de consolo, sei-o eu.
ao antever o fim do teu caminho, reconfortou-te essa ideia de perenidade.
por muito que seja o que a vaidade nos prometeu,
reconforta no fim
saber-nos um alicerce entre tantos que vão fundeando a ideia da ideal cidade.

fica feito o percurso que fizeste.
e se mais não foi possível, podes sempre alegar a falta de oportunidade.
mas para que conste e o saibam, quiseste;
óooh se quiseste, chegar ao exacto ponto onde começa a eternidade.

somos assim, nós, os ateus;
intrinsecamente religiosos.
sabemos não ser definitivo o adeus,
quando ao pó retornarem os nossos ossos.

impelido pelo desassossego que te consumia,
tentaste aprisionar nas palavras o caos que sabias reinar.
levantaste-te do chão em cada novo nascer do dia;
e para divinizares a humanidade, à noite, era sobre o lodo original que te ias deitar.

a mortalha da genial metáfora resgatar-te-á 
aos olhares dos que tentarem vislumbrar-te na podridão.
e o dogma cairá,
se por ela se guiar o Homem que cego, tacteia a escuridão.

essencial substância da aleatória arquitectura do universo,
fizeste mais que a tua parte.
na tentativa de dar forma a uma alma pela prosa e pelo verso,
deste ao nosso embrutecimento as ambíguas subtilezas de uma refinada arte.




leal maria

2 comentários:

Anónimo disse...

Oi

Daqui a Graciete
Tal como deves imaginar não me identifico com a tua visão mas gostei do poema;)
Só uma coisita...
Todo o dogma vale por si quando é fundamentado e, quando se fala de fé, ela move muita gente, fá-los viver, por isso, nunca se deve dizer a quem crê -"não creias"- porque ninguém é dono da verdade.
A mim pouco me afecta que ponham as minhas crenças em causa porque sempre as fundamentei e elas fazem-me alguém muito feliz, com vontade de viver e de levar vida a quem dela precisa.Sim, é isso que eu ensino aos meus meninos da catequese, a levar vida aos outros,ou pelo menos tento.Tentar fazer tal como considero que fez Jesus Cristo. E isso não é andar a desviá-los:ppp
Mas por favor, nunca digas a alguém que tem fé " Não tenhas!" porque podes tirar-lhe a vida.
Aceito a tua visão e também me enriquece por isso não sejas tu a não aceitar. Não podes impôr a tua verdade a ninguém como já te vi fazer algumas vezes e isso entristeceu-me imenso.
A fé faz muita gente ser feliz!Viver a fé é uma opção de vida.

Senti necessidade de te dizer isto.

Quanto ao saramago, não cheguei a ler o último livro dele portanto nada comento. Matenho o mesmo respeito q tinha antes pela obra deixada, apenas.

E, sem mais delongas, uma boa semana;)

leal maria disse...

Linda Graciete,
O dogma dificilmente se fundamenta, porque assenta na obstinada recusa de quem lhe é fiel; a ver as coisas por um outro prisma… uma outra perspectiva. Acomodados no “conforto” que nele encontraram, recusam fazer as mais óbvias perguntas, com medo que as respostas abalem as estruturas do frágil edifício que é a sua fé, posta sem subterfúgios, perante os argumentos da lógica e da razão. É essa a substancial diferença entre quem tem fé e quem não a tem. Os racionalistas, tentam à partida não rejeitar nenhuma resposta. Os crentes rejeitam logo à partida fazer as essenciais perguntas.
A única verdade é essa tua afirmação de que “todo o dogma vale por si”. E é por essa alta valoração que lhe fazem, que a muitos é imposto o jugo de o aceitar ou em alternativa; perecer por o recusar. Tantos foram os que tombaram por afrontar a fé. Seja ela assente numa religião, ou num sistema político. Muitos tombarão ainda. Mas é uma luta que tem de se travar; em nome desse bem maior que é a liberdade da consciência que tenta não oprimir outras. Eu estou na parte mais fácil da luta. Felizmente vivo num país tolerante que pertence a uma Europa que é a luz do mundo e, paulatinamente, vai criando o paradigma do paraíso possível, que será realizado aqui, nesta terra onde vivemos e com a vida que temos, sem que se hipoteque a felicidade que está “ao virar da esquina” pela incerteza alicerçada nas alucinações de ancestrais auto-denominados profetas. Como vês, actuando nestas latitudes, pouco riscos corro ao defender o que defendo e, se esse risco for a inconveniência da inquietude provocada na tua fé, tanto melhor; pois gostando de ti e, por consequência, não me sendo indiferente a tua vida, quero que colabores na perpetua descoberta da mais intrínseca natureza das coisas. Podemos nunca vir a atingir os objectivos pretendidos, mas tentaremos e alguma satisfação havemos de tirar na procura.
Quando digo a alguém: “não tenhas fé”, não é para que a venha a perder; mas para que questione o absoluto da verdade que diz possuir. Como se pode ferir alguém ao lembrar-lhe a sua mais intrínseca liberdade que é o de questionar-se a si próprio?!
O Saramago era um amargo que perdeu a fé num sistema político caduco e com medo de o descobrirem incoerente, enveredou muitas vezes na pura provocação e apoios políticos duvidosos. Mas algo de maior nele sobrevive a isso tudo, no corpo das palavras que nos deixou. Quem o souber ler, verá o quanto de ternura nele havia, por esta humanidade que em si encerra o que de melhor há, bem como o pior. Paradoxo esse que tanto tem substanciado o percurso que nos trouxe até aqui.
O primeiro livro que dele li foi “levantado do chão” e depois seguiram-se muitos outros que dele fizeram o meu autor literário preferido. Mas esse primeiro título mantém-se para mim a perfeita metáfora do que o Homem é: um levantado do chão a tentar alçar voo para o Olimpo ao brincar de ser um deus.

Beijos Graciete. Que te estejam a correr bem os exames.

Lindo esse poema! Tem a singela beleza das palavras simples que tentam não profanar os mais nobres sentimentos. É de tua autoria?
Gostaria de ter essa virtude da simplicidade na minha escrita, mas não sou eu que mando… a vontade impõe-se-me!


Luis Leal